04/01/2020
A RECAÍDA QUANDO TUDO VAI BEM
David, adicto limpo há 28 anos, do RJ
Companheiros,
Há umas duas semanas um companheiro que há muitos anos vem a irmandade e não consegue passar mais de um ano limpo, partilhou uma coisa que é muito comum (infelizmente) mas só agora me chamou a atenção: a recaída quando tudo vai bem.
Ele relatou que consegue ficar um tempo limpo, no máximo um ano, mas aí, do nada, quando as coisas estão bem, pimba! Recai. E começa tudo do zero.
Fiquei pensando sobre isso. É realmente estranho. Normalmente, associamos as frustrações como causa de recaída, mas não o sucesso ou a mera normalidade da vida. Daí resolvi arriscar essa opinião.
Tem uma passagem no texto básico que diz "algo em nós grita pelo fracasso". Freud falava sobre isso, chamando de "pulsão por morte" - o ser humano gosta também daquilo que lhe faz mal. Não vou me aprofundar na teoria psicanalista, até por que não sou profissional da área, embora me interesse pelo assunto. Mas uma coisa me parece: o impulso de recair quando tudo está bem vem do inconsciente e tem um propósito.
Quando usávamos, tínhamos uma vida irresponsável. Totalmente irresponsável. Nos primeiros tempos, usar era um barato, tal qual ir pra balada. Só que, amávamos tanto esse barato que o queríamos o tempo todo. Não tinha dia certo pra estudar e trabalhar e dia certo pra zoar. Depois que doença nos capturou, ficamos presos naquela vida de excessos. Não enxergávamos que já era uma prisão. O que antes era apenas uma molecagem de adolescentes, se perpetuou pela vida adulta. Então, adultos de 40, 50 anos tinham vida de adolescentes, sem serem mais adolescentes há muito tempo. Só se viu isso quando se chegou ao fundo do poço. Aí, reparamos que ficamos presos num modo de vida que já havia acabado há muito tempo para outros jovens, não adictos, que conhecemos naqueles primeiros tempos. A vida deles foi pra frente e a nossa, não.
No entanto, ALGUÉM CUIDOU DO QUE ERA SÉRIO enquanto os "bebes" eram irresponsáveis. São os facilitadores - pais, mãe, avós, amigos, esposa, maridos. E aqui é tá.
Nós nos habituamos a ter alguém que cuidasse da parte séria da nossa vida, que nós não podíamos e nem queríamos tomar conta. A doença aqui era BEM ÚTIL - nós aloprávamos e alguém organizava a bagunça.
Quando nos recuperamos e passamos a não aloprar mais, esses facilitadores entendem que não é mais necessário tomar conta da nossa vida por nós, por que já estamos crescendo. Então, ninguém precisa mais nos sustentar, nem cuidar dos nossos filhos, nem da nossa casa, nem da nossa aparência, nem da faculdade, nem do nosso carro, etc etc etc.
Mas...NÃO ERA ISSO O QUE QUERÍAMOS! A ideia de recuperação que tínhamos era de um passeio na Disneylândia! Não era estudar, trabalhar, fazer esforço. Os "bebes" não queriam crescer. Só queriam curtir a vida sem dr**as. Não pegar no pesado! Daí vem a saudade dos facilitadores.
Nessa etapa, quando tudo está bem, MAS A PARTE RUIM DA VIDA TÁ NAS NOSSAS MÃOS, vem um pensamento inconsciente (é só minha opinião, tá?): "se eu aloprar os facilitadores voltam". E os dodois voltam a ter vida de bebe, com alguém tomando conta da parte ruim da vida de novo.
É isso que pra mim explica a recaída quando está tudo bem.
Outra saída que a mente cria, ANTES DA RECAÍDA, para atrair os facilitadores novamente é a DEPRESSÃO. O deprimido é um coitado que não pode fazer nada e todo mundo tem que fazer tudo pra ele - tudo que é chato, diga-se de passagem. Comer e ver televisão se consegue deprimido.
Aqui vejo bem aquilo que o texto básico fala como "algo em nós grita pelo fracasso" e a pulsão por morte de Freud.
Lembrando: tudo isso é inconsciente. Ninguém quer mesmo recair ou ficar deprimido, mas a recaída e a depressão são mecanismos do inconsciente que a mente cria para que evitemos os combates pela vida. Essas duas coisas são reações do bebe que grita para que o mundo LHE DÊ aquilo que ele não pode ou não quer fazer.
Na minha experiencia pessoal, eu fiquei morando com meus pais mesmo em recuperação, quando tinha dinheiro para alugar um aparamento. Então, fiquei morando lá para não gastar esse dinheiro. E o que eu fazia com o dinheiro? passeava. Vida de adolescente rs. Sorte que eu tive um estalo de pagar um consórcio e hoje tenho meu ap. No entanto, morar com eles atrasou muito minha independência emocional. Saibam que só o ano passado, com 47 anos na cara, comprei uma máquina de lavar. Até então, levava minhas roupas para minha mãe por na máquina dela e eu economizar dinheiro e trabalho de cuidar das minhas roupas rs. Vida de adolescente!
Tá certo que se os facilitadores saírem da nossa vida de uma vez, é provável que os bebes recaiam, mas para o nosso bem eles TEM QUE SAIR, CADA VEZ MAIS.
Ser independente tem seus custos. E aí,vamos pagar?
Acredito que trazendo isso para o plano do consciente, desarmamos a doença e abrimos caminhos para o crescimento.