05/09/2024
*Fechar os Olhos para Poder Ver*
O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, no início de seu livro “Favor fechar os olhos”, nos presenteia com essa citação que atribui a Friedrich Nietzsche:
"O tempo da despreocupação – A quem foi concedida uma manhã ativa e tempestuosa da vida, de quem a alma foi tomada, no meio-dia da vida, por uma curiosa compulsão por tranquilidade, que pode durar por luas e anos. [Tudo] se torna silencioso à sua volta, as vozes soam cada vez mais distantes; o sol brilha vertiginosamente sobre ele. Em uma clareira escondida da floresta, ele vê o grande Pã dormindo; todas as coisas da natureza adormeceram com ele, uma expressão da eternidade no rosto – assim lhe parece. Ele não quer nada, não se preocupa com nada, seu coração está em repouso, apenas seu olho vive – é uma morte de olhos abertos".
Neste fragmento de texto, podemos sentir algo como uma paz e uma capacidade de um silêncio mental, que dificilmente se consegue encontrar no momento atual. Esse tem sido o ideal de uma Era, na qual o bem-estar e a felicidade estariam na tranquilidade, na ausência de sofrimentos, na plenitude, que está cada vez mais provando sua insustentabilidade. Nos consultórios, encontramos cada vez mais frequentemente nos relatos dos pacientes, o pânico de se estar na solidão, a angústia frente ao silêncio, que precisa ser preenchido nem que seja com uma fala-descarga ou uma música qualquer no celular, uma TV ligada em qualquer programa, uma olhada vaga pelos rells ou tik-toks da vida.
Um tempo sem tempo, uma correria pra dar conta de mais atividades que se pode dar, pressionada pela chamada Era do Desempenho: ter sucesso no corpo, na conta bancária, no desempenho dos filhos e na boa criação destes, no relacionamento amoroso, no desenvolvimento pessoal, no currículo profissional etc. Uma voracidade alimentada e descarregada por segundo na telinha portátil. O ideal buscado a todo custo passa por preencher o vazio e o resultado real é um esvaziamento maior ainda. Frente à impossibilidade de simplesmente poder ser, a angústia do fracasso leva a novos consumos num looping infinito.
Impera a lógica da aceleração, ininterrupta, desconexa, sem compasso, sem processo, sem conclusão, sem propriedade. Era do algoritmo em detrimento à construção lenta e rítmica das narrativas que se enredam dentro de uma vida sentida, vivenciada e espontânea de Pã.
Talvez estejamos experimentando o oposto à Pã que, dormindo de olhos abertos, vive todo seu corpo no presente momento, por isso sua mente está tranquila, relaxada e em paz. Num tempo onde cada vez mais consumimos conteúdos exclusivamente com os olhos, abortando os outros órgãos dos sentidos, nos vemos numa compulsão repetitiva, sem vida, sem criatividade, acreditando estar vivos porque só os olhos estão envolvidos nessa absorção de informações. Mas esta compulsão está encobrindo o quê? Será que quando disponibilizamos nosso precioso tempo em busca de conteúdos prontos e formais com aparência inovadora, não estamos justamente desviando nossa atenção do que realmente importa?
Essa compulsão por vigilância e ao mesmo tempo por distrações, por suprir a falta buscando a superficialidade, é nossa defesa maníaca, segundo o psicanalista Zelig Liebermann. A defesa maníaca é a saída do estado melancólico da humanidade pela perda de seus ideais.
*A Morte de Olhos Abertos*
As lendas antigas descrevem o deus da mitologia grega Pã como metade homem, metade bode. Ele foi o deus das florestas e bosques, deus na natureza que representa os instintos, os impulsos, o irascível e o incontrolável. Era capaz de causar terror e pânico (palavra que advém de seu próprio nome) aos viajantes desavisados. Por essas características, posteriormente ele foi comparado ao diabo, ao mal e à morte; foi tido como o desconhecido que, pela condição de estranho, torna-se sempre suspeito.
A morte de Pã está dentro do ideal ascético cristão, diria Nietzsche. Exortar da humanidade o que se caracterizou por instintivo, pela ordem dos impulsos, tornando o homem escravo, preferindo a comodidade (tranquilidade) e os prazeres imediatos (compulsividade). Esse ser humano entorpecido como diz Nietzsche, prerrogativa do “homem-padrão” da sociedade do desempenho de hoje, não percebe nem sente; seus olhos estão abertos, mas ele não vê.
Não há um olhar para dentro, para as próprias angústias, faltas, desejos e necessidades. Há uma compulsão em buscar as respostas prontas (divinas) e com isso a morte da pergunta. Sustentar estas contradições mostra-se necessário para que haja a possibilidade real de ver, de ser.
A condição da percepção é fundamental para todo desenvolvimento do processo psíquico, diz Freud. Da percepção é possível que a mente crie seus registros, suas representações e, posteriormente, o quantum de energia que advém dessa excitação mental que deve gerar ação. Mesmo que a ação seja ainda mental, como pensar, refletir, sonhar ou devanear, ou ainda imaginar.
A conclusão com os olhos fechados que Byung-Chul Han afirma, pode ser compreendida como a passagem da pulsão da percepção para as capacidades mentais mais elaboradas da psique. Ao fecharmos os olhos para sonhar, encontramos clareiras, como as que a personagem de Nietzsche encontrou na floresta, espaço-tempo de abertura, de vazio no presente, que contém como matéria-prima o passado, mas que é pleno de possibilidades para o futuro.
*O Que Realmente Importa: Aceleração x Narrativa*
A aceleração da sociedade da informação e da tecnologia digital foi se tornando obrigatória… não escolhemos mais fazer mil coisas ao mesmo tempo, temos que fazê-las! A pandemia de Covid-19 colocou ainda mais energia nisso: quando tudo teve que ficar virtual, sonhamos que teríamos mais tempo, mas o processo foi inverso: milhares de pessoas no mundo trabalhando em casa, cuidando dos filhos, do almoço, da higiene, do s**o, tudo ao mesmo tempo e no mesmo lugar. O fenômeno da multitarefa do qual Byung-Chul Han fala em sua outra obra, “A Sociedade do Cansaço”.
A pergunta “o que realmente importa?” parece ser fundamental para nos tirar do poço fundo da falta, sem nos jogar para a fantasia da completude. Essa pergunta nos leva a mudanças de paradigma, considerando a realidade atual, o passado e os novos ideais de futuro.
Essa pergunta, que muitas vezes é a motivação para a busca de análise pessoal ou psicoterapia, cria narrativa. Num espaço-tempo protegido dos excessos, parte-se do silêncio para dar voz aos sons internos de cada um.
No diálogo entre analisando e analista, para buscar respostas não-prontas a essa pergunta, começa-se a criar histórias, resgatar fantasias, visitar baús e encontrar tesouros, navegar em águas turbulentas de conflitos internos e externos e na dor. Vai-se, ainda, desenhando horizontes. Horizontes que importam para um Self mais maduro e fortalecido, fazer escolhas próprias mesmo que haja forças o empurrando para outras direções; para encarar os desafios da dor, da frustração, da solidão e também experimentar as conquistas e as alegrias do viver.
Referências
Han, Byung-Chul. “Favor fechar os olhos : em busca de um outro tempo”. Petrópolis, RJ : Vozes, 2021.
Libermann, Zelig. “O Ego e o Id: A atualidade entre o Superego e o Ideal de Ego” apresentado na Quinta Científica, promovida pela Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SBPPA, em 18/04/2024.