26/07/2025
C.3. O psicanalista e o mudo
Você achou que era uma sessão analítica? Não. É uma crônica sobre pele, silêncio e desigualdade.
✍️ Rafael Costa
📌 IG
Um nasceu branco, filho de professora pública.
O outro nasceu negro, filho da urgência — a mãe era diarista, vivia exausta, passava os dias fora tentando sobreviver limpando o mundo dos outros, enquanto o próprio filho aprendia a apagar o próprio.
Um br**cava de montar palavras com blocos coloridos.
O outro aprendia a equilibrar latas de leite condensado num tabuleiro de doces na esquina da escola onde não podia entrar.
Aos sete, o branco ganhou um livro com dedicatória.
Aos sete, o negro ganhou o silêncio.
E nunca mais devolveu.
O branco foi crescendo entre análises lacanianas e colégios com nomes franceses.
O negro cresceu cuidando dos irmãos, cozinhando, lavando roupa, enquanto a mãe lhe pedia — sem poder escolher — que fosse “o homem da casa”.
Homem demais pra ter infância.
Responsável demais pra ir à escola.
Um foi ao teatro, fez intercâmbio, descobriu Foucault.
O outro aprendeu a trocar o bujão de gás, a fugir da ronda, a não reagir.
O branco virou psicanalista.
Escreve sobre a escuta, o trauma, o recalque.
É citado em congressos e podcasts.
Fala sobre o “Outro” como conceito.
Nunca cruzou com ele na fila do banco.
O negro não virou nada.
Virar exige tempo, e ele só tinha pressa.
Pressa pra pagar o aluguel, pra sair do bairro antes do toque de recolher, pra não morrer de polícia nem de tráfico.
Pra não morrer, ponto.
Nunca estudou.
Nunca teve diploma.
Nunca teve opção.
Mas teve que ter palavra.
Até que um dia — calou.
Ninguém notou.
Porque negro calado é confundido com mobília.
Negro calado é confundido com ameaça.
Negro calado é confundido com tudo — menos com sujeito.
Dizem que era mudo.
Mas ele falava.
Falava até demais, até que o mundo gritou mais alto.
Calaram ele com piada.
Calaram com escárnio.
Calaram com desdém.
Calaram com viatura.
Calaram com desprezo disfarçado de meritocracia.
E ele, que um dia sonhou em ser qualquer coisa, virou estatística.
Estatística não fala.
Estatística serve pra justif**ar corte de verba e dobrar a cerca.
O branco?
Publica livros sobre trauma histórico.
Lamenta, sim.
Mas à distância.
E, no fundo, agradece por não ter nascido do lado errado da calçada.
É verdade: há muitos negros que falam.
Falam alto, falam forte, falam bonito.
Mas, pra serem ouvidos, precisam falar mais do que o dobro.
Precisam sorrir mais.
Obedecer mais.
Se vestir “melhor”.
Não errar.
Não gaguejar.
Não parecer bravo.
Ser cordiais, mesmo quando insultados.
Ser educados, mesmo quando humilhados.
Ser dóceis, mesmo quando confundidos com criminosos.
Porque falar, pra eles, não é só linguagem —
é sobrevivência.
E mesmo assim, nem sempre basta.
O mudo tinha um amigo.
Negro também.
Tão eloquente quanto invisível.
Um dia, entrou num shopping pra sacar dinheiro.
Foi seguido por um segurança.
Depois veio a polícia.
“Esse aí tá estranho.”
Deram ordem.
Ele tentou explicar.
Explicação não é defesa.
Explicação não é álibi.
A pele é a sentença.
Um tiro.
No peito.
Na fala.
Na cor.
No sistema.
O que atiraram ali?
Um projétil?
Ou o país inteiro disparando contra um corpo que nunca coube na narrativa?
O mudo não estava lá.
Mas o tiro acertou ele também.
Acerta todos.
Todos os dias.
A escravidão acabou.
Mas o racismo aprendeu a andar de terno.
Aprendeu a escrever em editais.
Aprendeu a sorrir.
Aprendeu a dizer que a culpa é sua.
E ele, o mudo, não se calou.
Foi calado.
Tornaram-no mudo porque ninguém escutava.
Porque não havia espaço.
Porque lhe disseram, desde sempre, que faltou esforço.
Faltou empenho.
Faltou dedicação.
Como se partir de mil metros atrás fosse questão de escolha.
Hoje, vendem o termo “inclusão racial” em painéis com coffee break.
Mas o que é estruturado não é a inclusão —
é o preconceito.
E o futuro?
Vem cheio de comparações indecentes:
comparam trajetórias que nunca largaram do mesmo ponto,
medem com a mesma régua quem nasceu com os pés amarrados,
dizem que é igual,
dizem que é justo,
dizem que é mérito.
Enquanto isso,
o mudo segue mudo.
Não por timidez.
Mas porque ninguém nunca perguntou —
de verdade.
Porque acharam que tudo o que ele tinha a dizer já estava dito.
Gravado em sua pele.
E sua pele, mesmo negra, era a única defesa que lhe restava pra continuar vivo.