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Travessia Psicanálise Travessia: um lugar onde paramos para refletir, trocar ideias, reconhecer em nossos pares as diferenças e semelhanças que nos levam a exercer a psicanálise

30/03/2025
O reino da doençaFernanda Bastosdisse:fevereiro de 2025 – Revista CultLogo na abertura de A doença como metáfora, Susan ...
05/02/2025

O reino da doença

Fernanda Bastosdisse:
fevereiro de 2025 – Revista Cult

Logo na abertura de A doença como metáfora, Susan Sontag defende que “todos nascemos com dupla cidadania, uma do reino da sanidade e outra do reino da doença”. A sentença nos alerta sobre a impossibilidade de câmbio entre os dois mundos. Quem está são vai para um lado; quem está doente, para outro. Isso se confirma para quem lê Casa de família, romance de Paula Fábrio, publicado em 2024 pela Companhia das Letras. A doença como condição, tema da obra, se desdobra na enfermidade como metáfora, transformando a mãe, antes produtiva e motor da casa, em um peso, um símbolo do mal que se aprofunda com a progressão de sua dependência. A enfermidade leva ao empobrecimento e serve de justif**ativa para a decadência dos familiares que a cercam. “Então veio Toninho e bateu na cabeça dela como punição. Cada vez que ele passava dos limites, aquilo funcionava como um alerta para nós, da raiva que temos dos doentes. Da subsequente vergonha do que somos.”

A doença não se restringe à decrepitude em que se encontram a protagonista em 2019 e sua mãe nas décadas de 1980 e 1990. Ela se apresenta como vários nódulos: na compulsão de uma das empregadas domésticas, na falta de caráter do irmão e no modo como a protagonista se refere à dissidência de sexualidade do ex-noivo. “Não tenho nenhum amigo gay. Como todo mundo na rua Sertões e na minha família, considero isso uma doença, um desequilíbrio, algo surreal”, dispara a narradora, que, o tempo todo, joga com a pressuposição de que seu pensamento é corroborado e, portanto, passível de endosso por supostamente ter aprovação da maioria. Trechos como esse reforçam a noção da doença como um incômodo ao que é tido como normal. O romance é genuíno em encarar como a dinâmica da família diante da doença produz sofrimento e sentimento de frustração, salientando o papel da filha como alguém que recebe o legado de cuidar dos outros, como uma espécie de marca trágica atribuída às mulheres.

Progressivamente, vamos compreendendo que a doença que o livro descreve não é só aquela apresentada no diagnóstico da mãe ou na confusão mental que atormenta a filha, anos depois. Os eventos que marcam a tragédia da família nos mostram os problemas sociais e econômicos do Brasil, como uma metáfora do adoecimento resultante de um embrutecimento generalizado. É por essa janela aberta que a autora pergunta se é possível alguém permanecer são em meio à organização social doente que criamos, com ódio de classe, xenofobia, corrupção, racismo e misoginia.

Através das rotinas de interação com as diversas empregadas domésticas e cuidadoras, vão-se o tempo e as expectativas não cumpridas de uma família de classe média. Esse núcleo doméstico, que parece viver cerrado em casa, pela condição de enferma da mãe, não é imune aos acontecimentos externos, como as ações do governo e a instabilidade econômica. As dificuldades de manter a vida de classe média em um bairro da capital paulista servem de contexto histórico e alimentam a memória de quem viveu os anos de redemocratização, o caos da administração de Fernando Collor e o alento social-democrata dos dois governos de Fernando Henrique Cardoso. A falta de esperança, no entanto, é acelerada pelas mudanças, explicitadas pela inquietação e pela frustração das sucessivas trocas de empregadas e cuidadoras. Também é por meio de suas vozes que a autora empreende uma análise desalentadora da condição da mulher na sociedade.

A obra alterna capítulos narrados em primeira pessoa com uma espécie de diário, exibindo um contraste entre a memória dos acontecimentos pela protagonista e pelas empregadas domésticas. Nesse ponto, a autora quer mostrar o descompasso entre os desejos e as aspirações de pessoas com pontos de partida tão diferentes. No entanto, uma vez que a família luta para se manter na classe média, ela f**a bem menos distante do que gostaria da condição de suas empregadas.

A narração em primeira pessoa concede liberdade poética às personagens, gerando alguns momentos de certo brilho e razoável ironia, que contrastam, aliás, com as intromissões de uma espécie de voz de censura àquilo que se convencionou chamar no nosso tempo de politicamente incorreto. “O contador principal bêbado e gago porque o filho é retardado. (Era assim que se falava.)” Enquanto ali o capacitismo é censurado, em outro trecho o racismo da personagem não passa por esse mesmo crivo de autoconsciência civilizadora. “E meu pai costuma reclamar das negras, mas porque deixam um cheirinho pela casa. Eu sinto o cheirinho, mas tenho vergonha de dizer.” De resto, o romance é exitoso em retratar os conflitos de classe entre patroas e empregadas domésticas por meio de uma filha que progressivamente desenvolve consciência sobre a natureza do trabalho doméstico e da falta que a mãe faz, não só para a gerência da casa, como também para a própria edif**ação do núcleo familiar. O tema da exploração ganha aqui contornos mais interessantes, pois foge da intenção vitimizadora dando preferência à luta entre miseráveis que ora se irmanam (como nos momentos em que a família recebe as empregadas à mesa), ora se supõem uns melhores que os outros (como na divertida confissão da empregada que canta alto para fazer pirraça à filha da patroa).

A autora corre perigo quando envereda por uma estratégia que tem sido invocada ao limite na literatura produzida hoje no Brasil: as referências contextuais que surgem como espécie de enxerto, beirando o didatismo, como no caso da explicação do overnight e em adendos que parecem sugerir uma certa descrença na força intelectual do ato de narrar uma história de ficção.

Ademais, durante a leitura de Casa de família, f**a evidente que o obcecado desejo de embutir as mil pautas do noticiário atual dentro das limitações midiáticas de um romance é uma operação discutível. A obra parece disposta a arriscar todas as suas virtudes – e não são poucas – em nome de uma promessa que tem mais a ver com pressão social do que com urgência estética. Gestos assim, embora bem-intencionados, esvaziam a possibilidade de um relato imaginativo mais rico e subjugam a obra a um imperativo instrumentalista. Nos momentos em que compreende isso, a autora brilha. Quando prefere apostar na nossa distração, ofusca seu próprio e inegável talento.

O livro chega com o selo de vencedor do Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres, criado pelo Ministério da Cultura, em 2023. Os fragmentos de confissões, as cartas e as memórias registradas pela narradora ecoam, aliás, o legado de Carolina para a literatura contemporânea. Além da forma, a influência está no tema da casa e do quarto de despejo, metáfora cunhada por Carolina para falar da favela e que Fábrio também desloca para os pequenos cômodos que serviram por muitos anos para, na maioria das vezes, acomodar precariamente trabalhadoras domésticas em casas de classes alta e média de grandes cidades brasileiras. É com esse imenso legado, da literatura de Carolina e dos problemas sociais brasileiros denunciados por ela, que Paula Fábrio dialoga e é para ele que entrega uma obra – a despeito dos tropeços – ágil e instigante.

Fernanda Bastos é jornalista, editora de livros, tradutora e doutoranda no programa de Ciências da Comunicação da ECA-USP. Autora de três volumes de poesia e um livro de ensaios, foi também uma das curadoras da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) em 2022 e 2023

A neurociência visita FreudLuciano Magalhães MeloMédico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilem...
02/11/2024

A neurociência visita Freud

Luciano Magalhães Melo
Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

Para muitos, ele foi capaz de enganar o mundo, mas também foi aquele que contribuiu para que as pessoas fossem ouvidas

"Eu sei que não é bom para mim, mas meu cérebro manda fazer, e eu faço de novo." Eu aposto um livro de interpretações de sonhos, ganha a leitora que provar nunca ter ouvido algo assim, mais de uma vez. A frase transmite um conflito mental da razão contra uma força submersa, e deixa evidente a fissura do "ser". Vulgaridades à parte, naquela frase há a prova de que Ele está entre nós. Ele é Sigmund Freud, o neurologista que criou conceitos sobre o inconsciente, frequentes até em nossas conversas despretensiosas.

Esta presença demonstra o inegável: Freud foi um dos pensadores mais influentes do século passado. Contudo, a fama, expôs o tamanho de seu telhado de vidro, de proporções a um obelisco fálic... ou corrigindo meu ato falho, de um obelisco faraônico. Seus estudos de caso são nada confiáveis, repletos de afirmações absurdas e generalizações.

Para muitos cientistas, Freud foi capaz de enganar o mundo todo, um especialista em fazer com que conclusões extravagantes parecessem genialidade. Frank Tallis, psicólogo, ainda que ciente destes pontos, defendeu Freud em artigo recente publicado na revista Brain. Ele inicia sua argumentação nos recordando que Galileu não é reconhecido pelos horóscopos que fazia. Por analogia, seria justo, então, relembrar Freud apenas por suas inconsistências? Houve acertos, inclusive em sua quase esquecida fase de neurologista tradicional.

Freud foi aluno de Charcot, o fundador da neurologia moderna, e escreveu uma monografia importante sobre distúrbios de linguagem. Quando estudante, ele explorou o emergente campo da microscopia neural. Porém, não avançou, pois sofreu do antissemitismo das academias austríacas. O preconceito talvez tenha sido um empurrão que o fez mudar seu foco de estudos dos nervos para a mente.

A defesa de Tallis a Freud prioriza esta nova fase e recorre a Robert Trivers, o fundador da sociobiologia. Para Tallis, Trivers confirma Sigmund Freud pois teorizou que a seleção natural tratou de preservar alguns aspectos inconscientes, de modo a evitar sinais sutis de autoconhecimento. Desta forma, o cérebro humano evoluiu para o autoengano. A vantagem dessa distorção é adaptativa, quanto melhor mentimos para nós mesmos, melhor enganamos os outros. Portanto o conflito inconsciente versus razão opera para que não tenhamos uma ideia clara a respeito de nós mesmos.

Outro cientista citado por Tallis é Robin L. Carhart-Harris psicofarmacologista da Universidade da Califórnia. Diferente de Trivers, Carhart-Harris é explícito em defender Freud. Para o psicofarmacologista os recursos modernos confirmam, em certa medida, as ideias freudianas de que a cognição humana é dividida em processos primário e secundário. O primário é evidente em situações não ordinárias, como em sonhos e na loucura, não é organizado e flui livremente. Seria, portanto, uma forma de consciência mais primitiva (o id). O secundário integra ou vincula o processo primário e seu sistema representacional. Também suporta as concepções da realidade testável e o processamento das percepções. Dessa forma, organiza uma outra instância de consciência, mais coesa (o ego). Em simplif**ação, Freud sugeriu que pensamentos ou ações que emergem do cérebro, dependem de como o ego incorpora ou suprime as forças inconscientes.

Técnicas modernas de imagens do funcionamento cerebral, demonstram a existência de uma estrutura organizada em uma ampla rede de neurônios cerebrais, que é responsável pela introspecção. Esta cadeia neural, denominada de rede de modo padrão, discrimina o que é real daquilo que é apenas um produto de atividade cerebral irrelevante. Estas diferenciações formatam a concepção da realidade testável e o fluxo de pensamentos. O indivíduo com distúrbios da rede de modo padrão pode romper com a realidade. Para Carhart-Harris está aí o mecanicismo biológico que contempla a ideia de Freud, do processo secundário "abafando" um primário.

Vale lembrar que o primeiro psicanalista foi também pioneiro em tentar conciliar psicanálise e ciência, quando em 1890, escreveu rascunhos do 'Projeto para uma Psicologia Científ**a. Mas a escassez de conhecimento e tecnologia naquele tempo, fez Freud depender de ‘imaginações, transposições e suposições', e desistir de seu projeto. A sofisticação veio, e atualmente com estes recursos disponíveis, ainda não conseguimos mapear o que é autoconsciência ou a consciência do ambiente. Muito menos, vencer as doenças mentais. As sínteses de Frank Tallis e Robin L Carhart-Harris, podem soar abstratas, ambiciosas e especulativas. Mas são um ponto de partida importante. No entanto, Sigmund Freud tem muito mérito. Ele contribui para que pessoas sejam ouvidas, e apontou a importância dos acontecimentos sócio familiares para toda a vida, especialmente na infância. E iniciou as terapias conduzidas pela fala.

Referências

Frank Tallis, We should still pick up the pearls: on the scientific status of Freud, Brain, Volume 147, Issue 4, April 2024, Pages 1115–1117, https://doi.org/10.1093/brain/awad414

Von Hippel W, Trivers R. The evolution and psychology of self-deception. Behav Brain Sci. 2011 Feb;34(1):1-16; discussion 16-56. doi: 10.1017/S0140525X10001354. PMID: 21288379.

Carhart-Harris RL, Friston KJ. The default-mode, ego-functions and free-energy: a neurobiological account of Freudian ideas. Brain. 2010 Apr;133(Pt 4):1265-83. doi: 10.1093/brain/awq010. Epub 2010 Feb 28. PMID: 20194141; PMCID: PMC2850580

Mechelli A. Psychoanalysis on the couch: can neuroscience provide the answers? Med Hypotheses. 2010 Dec;75(6):594-9. doi: 10.1016/j.mehy.2010.07.042. Epub 2010 Aug 14. PMID: 20709458.

Vijayaraghavan S, Ross DA, Novick AM. Under the Microscope: Nerve Glue and the Evolution of Psychiatric Neuroscience. Biol Psychiatry. 2024 Nov 1;96(9):e11-e13. doi: 10.1016/j.biopsych.2024.08.017. PMID: 39357969.

Trivers, R. (2010). Deceit and self-deception. Mind the gap: Tracing the origins of human universals, 373-393.

Folha de São Paulo, 27/10/2024

Dinheiro não é capital, elite não é classeChristian DunkerCult - 310A tese de Freud sobre o dinheiro é simples, contunde...
21/10/2024

Dinheiro não é capital, elite não é classe

Christian Dunker

Cult - 310

A tese de Freud sobre o dinheiro é simples, contundente, e permanece, até nossos dias, uma grande intuição clínica, ou seja: as pessoas lidam com o dinheiro da mesma forma como lidam com a sexualidade. A pertinência dessa tese depende, naturalmente, do que entendemos por lidar com. A ideia talvez tenha sido sugerida pela palavra alemã commertz, que signif**a tanto comércio, por exemplo trocas de bens e serviços, envolvendo ou não dinheiro, quanto atividade sexual. Nas primeiras traduções de Freud ao português, encontrávamos frequentemente a expressão comércio sexual para designar relação sexual. Isso assinala o caráter troquista da teoria psicanalítica das relações, no interior da qual relacionar equivale a trocar.

Por trás dessa asserção, remanescem inúmeras associações culturalmente determinadas. Algumas pessoas entendem que o dinheiro é algo sujo, como o s**o. Outras, que a sexualidade deve ser vivida em segredo, como a riqueza armazenada no cofre. Alguns são dadivosos, outros avarentos com os prazeres, próprios ou alheios. Há ainda as que sentem que o dinheiro pertence a uma esfera extremamente íntima, que não deve jamais ser devassada. As pessoas inventam metáforas e nomes indiretos para os genitais, como periquita, bráulio, bilau ou perereca, assim como proliferam termos alegóricos e alusivos para designar o dinheiro, tais como bufunfa, grana, din-din ou cascalho.

Esse fator de indução metafórica toca a qualquer objeto ao qual atribuímos valor, ou, mais precisamente, usamos como equivalente para produzir comparações entre objetos. Isso signif**a que o valor de algo depende de um termo por meio do qual podemos comparar diferenças quantitativas e qualitativas. Esse é o caso clássico das palavras que foram aproximadas do dinheiro quando Saussure definiu o que é um signo. Uma nota de cinquenta reais pode ser juntada a outra nota semelhante e ser trocada por uma nota de cem reais, ou ser trocada por cinco notas de dez reais, sem que seu valor seja alterado. Assim, podemos comparar notas de dois, dez, cinquenta ou cem reais, estabelecendo uma ordem de grandeza. Em outro sentido, uma nota de cinquenta reais pode ser trocada por uma certa quantidade de dólares, ienes, florins ou libras, sem prejuízo de seu valor quantitativo. Nesses dois casos, estamos operando trocas de qualidade de dinheiro sem que a quantidade seja alterada. Mas algo diverso ocorre quando trocamos uma nota de cinquenta reais por um pedaço de tecido, por um tíquete de entrada no cinema ou por um prato de comida. Neste caso, ocorre uma troca entre substâncias de tipos diferentes. O mesmo acontecerá quando trocamos coisas pensando em seu valor de uso, ou quando trocamos coisas levando em conta apenas o seu valor de troca. No primeiro caso, estamos em uma circulação pequena, na qual a utilidade ou a serventia local têm primazia, ao passo que, no segundo, há um mercado, anônimo e vasto, em que as trocas podem ocorrer acrescentando um misterioso valor adicional aos objetos que foram produzidos como excedentes em forma de mercadoria, que costumamos encontrar na relação privilegiada que o fetichista mantém com seus objetos de prazer. Lembremos que, para o verdadeiro fetichista, as botas que ele aprecia incondicionalmente não podem ser trocadas pelas tranças ou pelas calcinhas que outro fetichista elegeu como seu fetiche preferencial. Diferentemente dos fetichistas se­xuais, que tendem a ser monótonos e monotemáticos, os fetichistas de mercadorias estão imersos em um mundo de trocas universais entre todos e quaisquer objetos segundo o mesmo equivalente.

Temos então três tipos de equivalentes, cada qual indutor de um universal. A lógica formal se apresenta como núcleo duro e universal da linguagem. O capital se propõe como forma geral das trocas econômicas. O inconsciente sexual completa a série como equivalente psíquico das relações de prazer. Isso permite reinterpretar a máxima freudiana de que as pessoas lidam com o dinheiro, ou seja, falam sobre o dinheiro, assim como elas usam a linguagem para lidar com a sexualidade. Todo o problema passa a ser então saber como esses três universais, falsos ou verdadeiros, admitem equivalências, perfeitas ou imperfeitas, entre si. Como cada um desses universais pode afetar ou influenciar os outros dois?

Para alguns, esses problemas poderiam ser resolvidos pelo recurso a um universal ainda mais abrangente, de natureza física ou química, chamado energia. Aparentemente isso não passa de mais uma analogia. A irredutibilidade entre os universais implica jamais identif**ar perfeitamente a relação entre dinheiro e capital. Implica também que, quando examinamos a equivalência entre capitais financeiro, cultural e social, proposta por Bourdieu, jamais admitimos uma equivalência perfeita.

Quanto à incidência clínica da relação com o dinheiro, ela nos ajuda a entender várias diferenças que os economistas tendem a tipologizar, perdendo, com isso, toda a singularidade que pode haver na fauna sexual-monetária humana. Todos os desvios, inversões, fixações, superestimações da libido descritos por Freud em sua teoria da sexualidade têm correlatos nos modos típicos de relação ao dinheiro. Consideremos, por exemplo, o caso, mais ou menos típico, daquele homem que sofre com sua ejaculação precoce. Não conseguindo manter psiquicamente o patamar de “investimento libidinal” capaz de aumentar a tensão sexual, antes de descarregá-la com maior intensidade, ele “realiza seus lucros antes que eles aumentem substancialmente”. Ao mesmo tempo, ele parece imune ao prazer do outro. Na lógica de sua fantasia, o valor do agora se impõe ao do amanhã. Como se o princípio da realidade, como adiamento da satisfação, fosse corrompido pelo princípio do prazer imediato, aqui e agora.

No polo oposto, encontraremos aquele que guarda para si toda satisfação. Obcecado com a rea­lização de lucros futuros, ele está acometido por um excesso de adiamento da conversão da “realidade” em “prazer”. Aí teremos uma grande dificuldade em perceber que a realização do prazer ao longo do processo tornará a vida mais interessante. Aliás, a psicanálise não é um pansexualismo justamente porque, para ela, nem tudo é libido. A libido é exclusivamente a energia da pulsão sexual. A energia das pulsões egoicas é chamada de interesse. Entre nossos interesses e nossa libido, existe uma relação potencialmente conflituosa. Isso introduz uma dimensão libidinal que escapa aos que pensam a economia ou a linguagem a partir da forma simples do indivíduo.

Uma propriedade fundamental do prazer é que ele não pode ser contabilizado apenas na forma-indivíduo, como se pudéssemos nos contentar com os tipos sexual-monetários freudianos distribuídos entre dadivosos, avarentos, acumuladores, justiceiros ou fetichistas (orais, anais, fálicos ou narcisistas). A conta não fecha porque o prazer humano envolve hipóteses sobre o prazer (ou desprazer) do outro. Ou seja, não basta ter prazer, convertendo a libido no mercado atual ou futuro, nem se fazer reconhecer discursivamente como superior; também é preciso interpolar nessa equação o prazer ou o desprazer do outro. Em outras palavras, a mais-valia tem um falso equivalente no mais-de-g***r. Isso impõe que não basta g***r com o campeonato do Palmeiras, é preciso g***r ainda mais com o rebaixamento do Corinthians para a segunda divisão. Isso introduz, por exemplo, uma ortogonal entre ricos e pobres, em que cada qual pode supor que o Outro goza mais-ainda, independentemente de suas posses, uso ou abuso do capital.

A lógica sexual frequentemente justif**a que somos perturbados pela hipótese de que o gozo que interditamos em nós mesmos aparece de forma superfaturada na elite, da qual nos sentimos excluídos. Isso não signif**a que nossos interesses de classe sejam equivalentes de nossas inclinações libidinais. Ou seja, nossa gramática libidinal supõe que ricos, bem-educados, socialmente privilegiados, famosos ou bem-sucedidos gozam mais do que nós. Assim, também é mais fácil nos sentirmos pertencentes a comunidades de gozo mais do que a comunidades de identidade, destino ou interesse.

Confirma-se assim, para além dos pressupostos freudianos, que a maneira como falamos, contabilizamos ou circulamos nosso dinheiro é como organizamos libidinalmente nossas fantasias. Mas, quando capitalizamos nosso prazer como gozo, a fórmula se inverte. A partir de então, é a forma como fazemos circular o dinheiro como capital que determina como praticamos a troca sexual. Se na lógica do capital não há espaço para doação, generosidade ou solidariedade, na lógica da economia libidinal isso ainda é possível. Dar na mesma medida em que se recebe, g***r de forma equitativa ao gozo do outro, isso é impossível. A fantasia ideológica neoliberal se baseia justamente na convicção de que interesses divergentes de classe são redutíveis e equivalentes de economias libidinais das elites de gozo, sejam elas formadas por estrangeiros, mulheres e negros, sejam elas encarnadas por ricos, bem-educados e subcelebridades narcísicas.

Christian Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP, autor de Lutos finitos e infinitos (Paidós, 2023) e A arte de amar (Record, 2024). Youtuber e colunista do UOL-Tilt.

“O discurso da meritocracia acabou excluindo a contingência”, reflete o psicanalista. “Para esse discurso, se você for s...
24/08/2024

“O discurso da meritocracia acabou excluindo a contingência”, reflete o psicanalista. “Para esse discurso, se você for super mega duper, você vai ganhar, porque tudo que aconteceu de sucesso na sua vida está referido a pequenos atos que você tomou. É falso. É uma contingência que faz com que, se a atleta fizer o mesmo salto cem vezes, em parte delas vai dar certo, em outras, errado.”

Da reverência a Rebeca Andrade ao mar sem ondas no surfe, uma visão psicanalítica sobre os esportes olímpicos e como eles refletem a sociedade desigual e ultracompetitiva. E mais: por que o neoliberalismo não venderá remédio para superar sua própria crise

Sem filhos, nem parceiros fixos: saiba o que é agamia, nova forma de relacionamento dos jovensGeração de adolescentes pr...
07/05/2024

Sem filhos, nem parceiros fixos: saiba o que é agamia, nova forma de relacionamento dos jovens

Geração de adolescentes propõe mudanças na forma de pensar no casamento e na formação do núcleo familiar tradicional

O Estado de São Paulo
03/05/2024

A nova geração de adolescentes vem passando por uma transformação na maneira de se relacionar: estão sendo postos em jogo os ideais de parceiros fixos e de compromissos considerados tradicionais. É aí que entra a agamia. A palavra, que vem do grego, na junção de “a” (não ou sem) e “gamos” (união íntima ou casamento), explica a falta de interesse na formação de relacionamentos românticos e na intenção de ter filhos.

Nesse âmbito, os dados não negam: em pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizada em 2018, o número de solteiros do Brasil era de 81 milhões, volume que ultrapassou o número de casados, com 63 milhões.

Segundo a professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, para o Jornal da USP, Heloisa Buarque de Almeida, o comportamento não é exclusivo do Brasil. Países como os Estados Unidos e o Japão já registram mudanças da nova geração na forma de se pensar sobre as relações amorosas.

A antropóloga também comenta sobre a busca pelo desapego com os compromissos amorosos e com a ambição em ter filhos. De acordo com Helena, o surgimento de preocupações globais da geração, como a vinda dos meios digitais, aliado à mudança comportamental com relação ao trabalho, são fatores que impactam na maneira de lidar com a concepção do casamento e da família.

Entretanto, em um estudo realizado sobre a geração Z (nascidos entre 1995 e 2010) e o “casamento tradicional”, pelo HSR Specialist Researcher, 76% dos jovens desejam morar com seu par. Entre eles, 57% querem casar no papel, com os dois morando na mesma casa, e 19% desejam uma união sem papel passado. Apenas 8% sonham com uma relação estável em que cada pessoa mora em locais diferentes, 9% não querem ter um relacionamento firme e 8% projetam ter uma relação aberta ou poliamor.

Mais de metade dos jovens da Geração Z querem casar à moda antiga
A agamia, apesar de ser uma tendência crescente, é ainda um novo formato de relação amorosa, que transita entre os diversos comportamentos da geração com o mundo, como a maneira de encarar o trabalho, lidar com a internet e até a mudança no consumo de bebidas.

Abandonar um filhoAo refletir sobre mulheres que deixaram a prole para trás, autora questiona por que a maternidade cobr...
06/05/2024

Abandonar um filho
Ao refletir sobre mulheres que deixaram a prole para trás, autora questiona por que a maternidade cobra tanto de todas nós

Anna Virginia Balloussier
Revista Quatro Cinco Um – 01 MAIO 2024

Há dois tipos de mãe ruim, a Nutella e a raiz. A primeira versão, pop na internet, preconiza uma mulher que compra um bolo qualquer para o aniversário do filho em vez de assar um com farinha especial e frutas orgânicas, ou que larga a criança vendo Peppa Pig para trabalhar quando poderia estar construindo ao lado dela um brinquedo montessoriano com madeira sustentável.

Essa aí é a “mãe ruim do bem”, que coleciona likes subvertendo com muita parcimônia o ideal de maternidade aspirado pelas classes mais abastadas.

As abandonadoras: histórias sobre maternidade, criação e culpa
Tradução de Eliana Aguiar
Editora Zahar // 280 pp • R$ 79,90

A jornalista catalã Begoña Gómez Urzaiz está mais interessada no segundo tipo: mulheres que abandonam sua prole não por circunstâncias brutais do destino que a deixam sem escolha, como maridos abusivos e guerras, mas porque em algum momento entenderam que aquele papel não se adequava a elas.

As abandonadoras (Zahar) começa com uma inquietação da autora: por que logo ela, “tão trabalhada no feminismo”, não conseguia conter a fiscal moral que carrega dentro de si ao esbarrar com uma dessas mães rotuladas pela sociedade como ruins pra valer?

Homens sempre renunciaram à custódia dos filhos sem julgamentos tão pesados. É como se pegassem um tempo mínimo de detenção por uma falha moral já esperada deles, enquanto a mulher que faz o mesmo é condenada à morte social. Seria uma pena justa para quem ousa esquartejar o instinto materno, essa premissa enraizada em tantas culturas.

Se a gente organizar direitinho, toda mãe tem culpa no cartório. O século 20 foi farto em gatos retóricos vendidos como lebres científ**as — estudos sem consistência que sugeriam como, da esquizofrenia ao autismo, tudo caía na conta das mulheres que ou protegiam as crias demais ou de menos, ou exerciam um carinho opressor ou encarnavam a “mãe geladeira”, pelo tratamento gélido dispensado à prole. A homossexualidade também seria fruto de uma relação patológica entre mãe e filho, tese defendida até por Betty Friedan no feminista A mística feminina.

Com mais ou menos culpa, ir embora foi o que fizeram as escritoras Doris Lessing e Muriel Sparks, a atriz Ingrid Bergman e a pedagoga Maria Montessori, que criou um método educacional que viraria queridinho na formação de elites — um dos homens mais ricos do mundo, Jeff Bezos, foi educado numa escola desse modelo.

Urzaiz também se ocupa de mães ficcionais que deixaram filhos para trás, como a protagonista do longa Carol (interpretada por Cate Blanchett), a Nora Helmer da peça Uma casa de bonecas, de Henrik Ibsen,ou a Anna Kariênina fabulada por Liev Tolstói.

O capítulo sobre Ingrid Bergman condensa alguns dilemas centrais do livro. Em 1940, a atriz escreveu uma carta a Roberto Rossellini na qual dizia ter adorado seus filmes Roma, cidade aberta e Paisà. Propôs na sequência: “Se estiver precisando de uma atriz sueca que fala inglês muito bem, que não esqueceu o alemão, que mal se faz entender em francês e que em italiano só sabe dizer ‘ti amo’, estou pronta para ir encontrá-lo e fazer um filme com o senhor”.

E foi se encontrar com o diretor, que a chamou para Stromboli e por ela largou esposa e amante. Ingrid deixou o marido e a filha Pia, de dez anos, nos Estados Unidos. Nesse meio tempo, engravidou de Rossellini e permaneceu na Itália. Mãe e primogênita f**aram separadas por seis anos em meio a um divórcio tenso, salvo “desconfortáveis visitas” da menina à Europa. Já adulta, Pia descreveu-as como tristes e impessoais.

O adultério já bastou para Ingrid virar alvo do moralismo hollywoodiano vigente — que demolia as mulheres, enquanto quase que pedia desculpas pelo incômodo de esbarrar nos homens. Urzaiz nos lembra de Charles Chaplin e sua queda por adolescentes. “Suas sucessivas esposas tinham dezesseis, dezesseis, 21 e dezoito anos no dia do casamento”, escreve.

Ingrid só foi trabalhar com Ingmar Bergman, com quem compartilhava sobrenome e raízes suecas, em 1978. Ele a dirigiu em Sonata de outono, em que a sexagenária atriz encarnou uma mãe ruim raiz, acusação que espelhava a própria biografia. Charlotte, a personagem, é uma pianista que negligencia o cuidado das filhas em prol da carreira.

Ingmar, lembra a autora, “teve nove filhos com suas cinco mulheres e vangloriava-se de não saber suas idades”, justif**ando-se assim: “Meço o tempo por filmes, não por filhos”. Não há notícia de mulher inocentada pelo tribunal da opinião pública se disser algo similar.

Urzaiz não passa pano para essas mulheres, mas também não passa raiva com o desapego maternal que elas apresentam — algumas com graus maiores de sofrência, como Ingrid, que preferia a filha ao seu lado, outras com menos.

Depois de virar mãe, Doris Lessing escreveu sobre não haver “nada mais tedioso para uma mulher inteligente que passar um tempo interminável com crianças pequenas”. Ela largou as dela, John e Jean, com o pai, mudou de país e nos anos seguintes construiu uma trajetória literária que lhe rendeu um Nobel de Literatura.

Outra figura evocada, Gala Dalí, tinha dificuldade em encontrar espaço para a filha que teve com o poeta Paul Éluard em sua vida. Musa do movimento surrealista, a russa se envolveu com Max Ernst e André Breton. Sua grande paixão foi Salvador Dalí, a quem num primeiro momento chamou de “pessoa desagradável” por causa do cabelo laqueado, que julgou lhe dar “a aparência de um dançarino profissional de tango argentino”, como ele lembraria em autobiografia.

Gala via a filha cerca de uma vez por ano. Cécile, já com 22 anos, fugiu de uma Paris prestes a ser tomada por tropas nazistas na Segunda Guerra e foi bater na porta do palacete que a mãe alugara no sul da França. Uma criada ia dispensá-la, por presumi-la impostora, dado que a patroa nunca havia mencionado sua existência. Man Ray e Marcel Duchamp, que jogavam xadrez na sala, reconheceram a jovem, que ficou alguns dias lá.

Que tipo de mãe é essa? Nem sempre é fácil simpatizar com as tais abandonadoras, e nem é essa a proposta da autora. É mais uma questão de empatia: essas mulheres são, afinal, uma hipérbole de tantas mães que se sentem sufocadas pela idealização da maternidade. É como diz um chiste popular nos círculos maternos: Deus me livre ser mãe, eu quero mesmo é ser pai, essa figura que com muitíssimo menos frequência precisa largar mão da carreira e dos cuidados pessoais depois do filho nascer.

Aqui o livro de Urzaiz é um par de jarros com Manifesto antimaternalista (Zahar), em que a psicanalista Vera Iaconelli fulmina a ideia de que a mulher é, por excelência e natureza, a melhor cuidadora que uma criança poderia ter. O instinto materno seria uma construção social fundida ao imaginário popular com tanta solidez que qualquer mulher, não importa quantos te**es do feminismo gabaritou, muito provavelmente vai se corroer de culpa por não brincar de Lego com o filho para terminar um trabalho, um papo no WhatsApp ou uma taça de vinho.

“Ser mãe, afinal, é um acúmulo de culpas que vão se sobrepondo sem medo de entrar em contradição entre si”, diz Urzais. No fundo, todas abandonamos todos os dias um pouco nossos filhos, e a culpa por deixá-los “é compatível com a culpa de recuperá-los” porque, quando estamos com eles, outros aspectos da vida caros a nós, mães, empacam.

Numa linguagem fluida, com bem-vindas doses de ironia e autodeboche, a catalã passeia pelos extremos para refletir sobre uma condição presente na vida das mulheres. Ela própria desaparecia da vista dos filhos para escrever seu livro, o que eu fiz também por alguns dias, com uma filha de quatro anos e outra recém-nascida, para terminar a leitura e articular esta resenha. Abdicar da “opção virtuosa” de se dedicar integralmente à função de cuidadora empurrada para as mulheres é aceito socialmente em doses homeopáticas, então menos mal.

“Se você quer fazer tudo bem, se aspira à medalha olímpica na categoria mãe, terá que entregar mais tempo, atenção e energia ao altar da maternidade”, diz Urzaiz. Oferecer-se como sacrifício a ele é uma hipótese que precisamos abandonar o quanto antes.

Anna Virginia Balloussier
É jornalista e autora de O púlpito: fé, poder e o Brasil dos evangélicos (Todavia).

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