21/10/2024
Dinheiro não é capital, elite não é classe
Christian Dunker
Cult - 310
A tese de Freud sobre o dinheiro é simples, contundente, e permanece, até nossos dias, uma grande intuição clínica, ou seja: as pessoas lidam com o dinheiro da mesma forma como lidam com a sexualidade. A pertinência dessa tese depende, naturalmente, do que entendemos por lidar com. A ideia talvez tenha sido sugerida pela palavra alemã commertz, que signif**a tanto comércio, por exemplo trocas de bens e serviços, envolvendo ou não dinheiro, quanto atividade sexual. Nas primeiras traduções de Freud ao português, encontrávamos frequentemente a expressão comércio sexual para designar relação sexual. Isso assinala o caráter troquista da teoria psicanalítica das relações, no interior da qual relacionar equivale a trocar.
Por trás dessa asserção, remanescem inúmeras associações culturalmente determinadas. Algumas pessoas entendem que o dinheiro é algo sujo, como o s**o. Outras, que a sexualidade deve ser vivida em segredo, como a riqueza armazenada no cofre. Alguns são dadivosos, outros avarentos com os prazeres, próprios ou alheios. Há ainda as que sentem que o dinheiro pertence a uma esfera extremamente íntima, que não deve jamais ser devassada. As pessoas inventam metáforas e nomes indiretos para os genitais, como periquita, bráulio, bilau ou perereca, assim como proliferam termos alegóricos e alusivos para designar o dinheiro, tais como bufunfa, grana, din-din ou cascalho.
Esse fator de indução metafórica toca a qualquer objeto ao qual atribuímos valor, ou, mais precisamente, usamos como equivalente para produzir comparações entre objetos. Isso signif**a que o valor de algo depende de um termo por meio do qual podemos comparar diferenças quantitativas e qualitativas. Esse é o caso clássico das palavras que foram aproximadas do dinheiro quando Saussure definiu o que é um signo. Uma nota de cinquenta reais pode ser juntada a outra nota semelhante e ser trocada por uma nota de cem reais, ou ser trocada por cinco notas de dez reais, sem que seu valor seja alterado. Assim, podemos comparar notas de dois, dez, cinquenta ou cem reais, estabelecendo uma ordem de grandeza. Em outro sentido, uma nota de cinquenta reais pode ser trocada por uma certa quantidade de dólares, ienes, florins ou libras, sem prejuízo de seu valor quantitativo. Nesses dois casos, estamos operando trocas de qualidade de dinheiro sem que a quantidade seja alterada. Mas algo diverso ocorre quando trocamos uma nota de cinquenta reais por um pedaço de tecido, por um tíquete de entrada no cinema ou por um prato de comida. Neste caso, ocorre uma troca entre substâncias de tipos diferentes. O mesmo acontecerá quando trocamos coisas pensando em seu valor de uso, ou quando trocamos coisas levando em conta apenas o seu valor de troca. No primeiro caso, estamos em uma circulação pequena, na qual a utilidade ou a serventia local têm primazia, ao passo que, no segundo, há um mercado, anônimo e vasto, em que as trocas podem ocorrer acrescentando um misterioso valor adicional aos objetos que foram produzidos como excedentes em forma de mercadoria, que costumamos encontrar na relação privilegiada que o fetichista mantém com seus objetos de prazer. Lembremos que, para o verdadeiro fetichista, as botas que ele aprecia incondicionalmente não podem ser trocadas pelas tranças ou pelas calcinhas que outro fetichista elegeu como seu fetiche preferencial. Diferentemente dos fetichistas sexuais, que tendem a ser monótonos e monotemáticos, os fetichistas de mercadorias estão imersos em um mundo de trocas universais entre todos e quaisquer objetos segundo o mesmo equivalente.
Temos então três tipos de equivalentes, cada qual indutor de um universal. A lógica formal se apresenta como núcleo duro e universal da linguagem. O capital se propõe como forma geral das trocas econômicas. O inconsciente sexual completa a série como equivalente psíquico das relações de prazer. Isso permite reinterpretar a máxima freudiana de que as pessoas lidam com o dinheiro, ou seja, falam sobre o dinheiro, assim como elas usam a linguagem para lidar com a sexualidade. Todo o problema passa a ser então saber como esses três universais, falsos ou verdadeiros, admitem equivalências, perfeitas ou imperfeitas, entre si. Como cada um desses universais pode afetar ou influenciar os outros dois?
Para alguns, esses problemas poderiam ser resolvidos pelo recurso a um universal ainda mais abrangente, de natureza física ou química, chamado energia. Aparentemente isso não passa de mais uma analogia. A irredutibilidade entre os universais implica jamais identif**ar perfeitamente a relação entre dinheiro e capital. Implica também que, quando examinamos a equivalência entre capitais financeiro, cultural e social, proposta por Bourdieu, jamais admitimos uma equivalência perfeita.
Quanto à incidência clínica da relação com o dinheiro, ela nos ajuda a entender várias diferenças que os economistas tendem a tipologizar, perdendo, com isso, toda a singularidade que pode haver na fauna sexual-monetária humana. Todos os desvios, inversões, fixações, superestimações da libido descritos por Freud em sua teoria da sexualidade têm correlatos nos modos típicos de relação ao dinheiro. Consideremos, por exemplo, o caso, mais ou menos típico, daquele homem que sofre com sua ejaculação precoce. Não conseguindo manter psiquicamente o patamar de “investimento libidinal” capaz de aumentar a tensão sexual, antes de descarregá-la com maior intensidade, ele “realiza seus lucros antes que eles aumentem substancialmente”. Ao mesmo tempo, ele parece imune ao prazer do outro. Na lógica de sua fantasia, o valor do agora se impõe ao do amanhã. Como se o princípio da realidade, como adiamento da satisfação, fosse corrompido pelo princípio do prazer imediato, aqui e agora.
No polo oposto, encontraremos aquele que guarda para si toda satisfação. Obcecado com a realização de lucros futuros, ele está acometido por um excesso de adiamento da conversão da “realidade” em “prazer”. Aí teremos uma grande dificuldade em perceber que a realização do prazer ao longo do processo tornará a vida mais interessante. Aliás, a psicanálise não é um pansexualismo justamente porque, para ela, nem tudo é libido. A libido é exclusivamente a energia da pulsão sexual. A energia das pulsões egoicas é chamada de interesse. Entre nossos interesses e nossa libido, existe uma relação potencialmente conflituosa. Isso introduz uma dimensão libidinal que escapa aos que pensam a economia ou a linguagem a partir da forma simples do indivíduo.
Uma propriedade fundamental do prazer é que ele não pode ser contabilizado apenas na forma-indivíduo, como se pudéssemos nos contentar com os tipos sexual-monetários freudianos distribuídos entre dadivosos, avarentos, acumuladores, justiceiros ou fetichistas (orais, anais, fálicos ou narcisistas). A conta não fecha porque o prazer humano envolve hipóteses sobre o prazer (ou desprazer) do outro. Ou seja, não basta ter prazer, convertendo a libido no mercado atual ou futuro, nem se fazer reconhecer discursivamente como superior; também é preciso interpolar nessa equação o prazer ou o desprazer do outro. Em outras palavras, a mais-valia tem um falso equivalente no mais-de-g***r. Isso impõe que não basta g***r com o campeonato do Palmeiras, é preciso g***r ainda mais com o rebaixamento do Corinthians para a segunda divisão. Isso introduz, por exemplo, uma ortogonal entre ricos e pobres, em que cada qual pode supor que o Outro goza mais-ainda, independentemente de suas posses, uso ou abuso do capital.
A lógica sexual frequentemente justif**a que somos perturbados pela hipótese de que o gozo que interditamos em nós mesmos aparece de forma superfaturada na elite, da qual nos sentimos excluídos. Isso não signif**a que nossos interesses de classe sejam equivalentes de nossas inclinações libidinais. Ou seja, nossa gramática libidinal supõe que ricos, bem-educados, socialmente privilegiados, famosos ou bem-sucedidos gozam mais do que nós. Assim, também é mais fácil nos sentirmos pertencentes a comunidades de gozo mais do que a comunidades de identidade, destino ou interesse.
Confirma-se assim, para além dos pressupostos freudianos, que a maneira como falamos, contabilizamos ou circulamos nosso dinheiro é como organizamos libidinalmente nossas fantasias. Mas, quando capitalizamos nosso prazer como gozo, a fórmula se inverte. A partir de então, é a forma como fazemos circular o dinheiro como capital que determina como praticamos a troca sexual. Se na lógica do capital não há espaço para doação, generosidade ou solidariedade, na lógica da economia libidinal isso ainda é possível. Dar na mesma medida em que se recebe, g***r de forma equitativa ao gozo do outro, isso é impossível. A fantasia ideológica neoliberal se baseia justamente na convicção de que interesses divergentes de classe são redutíveis e equivalentes de economias libidinais das elites de gozo, sejam elas formadas por estrangeiros, mulheres e negros, sejam elas encarnadas por ricos, bem-educados e subcelebridades narcísicas.
Christian Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP, autor de Lutos finitos e infinitos (Paidós, 2023) e A arte de amar (Record, 2024). Youtuber e colunista do UOL-Tilt.