21/10/2025
A ciência como palco: o desafio ético das sociedades científicas
As sociedades científicas têm desempenhado, historicamente, um papel essencial no desenvolvimento da Medicina Dentária. São espaços de encontro, de partilha e de construção colectiva de conhecimento. É através delas que se consolidam especialidades, se promovem boas práticas clínicas e se fomenta a formação contínua e a investigação. Num tempo em que a ciência e a prática clínica evoluem a um ritmo vertiginoso, estas estruturas assumem um papel insubstituível na promoção de uma cultura científica sólida, ética e exigente.
Apesar dessa importância, é um desafio mobilizar colegas a participar activa e plenamente na vida destas instituições. Para muitos profissionais as sociedades científicas são entidades distantes, pouco representativas ou desligadas do que hoje entendem ser as suas necessidades. É urgente contrariar esta tendência e revalorizar o sentido de pertença e de comunidade científica.
Não é possível ignorar a fragmentação do panorama associativo (nacional e europeu) em múltiplas sociedades, frequentemente criadas com nomes sonantes e propósitos aparentemente válidos, mas cuja existência se revela efémera. Surgem com grande entusiasmo inicial, ocupam espaço mediático e institucional, e acabam por servir, em alguns casos, mais os desígnios pessoais dos seus promotores do que o verdadeiro interesse colectivo. Uma vez cumprido o ciclo de visibilidade ou influência pretendido, estas sociedades entram em declínio, definhando até à inactividade ou extinção. Esta proliferação e subsequente desaparecimento de estruturas só fragiliza a credibilidade do tecido científico, desperdiçando energia e recursos que poderiam ser canalizados para instituições ou projectos sólidos e verdadeiramente colectivos.
Neste contexto, o perfil do líder associativo assume um papel determinante. Um bom líder é aquele que sabe servir sem se servir. Deve possuir a capacidade de delegar responsabilidades, de reconhecer o mérito alheio e de motivar equipas sem receio de perder protagonismo. A liderança em contexto científico é, acima de tudo, um acto de generosidade e de visão. Contudo, há quem confunda liderança com posse, adoptando uma postura de “proprietário”, como se a sociedade fosse uma extensão da sua identidade pessoal. Tal tentação traduz-se muitas vezes na centralização de decisões estruturantes, na ausência de consulta aos associados e no controlo unipessoal (ou muito restrito) de matérias que, pela sua natureza, deveriam ser amplamente partilhadas. Quando o poder se concentra num só indivíduo, perde-se a transparência e mina-se a confiança da base associativa.
Por vezes, estas posições de liderança são também utilizadas como plataformas de visibilidade e de influência, abrindo espaço a uma lógica de convites convenientes e trocas de favores. Observa-se, em certas situações, a preferência por um círculo restrito de convidados, cuja selecção parece ditada por interesses pessoais e conveniência relacional. Quando as sociedades se tornam instrumentos de progressão pessoal — e não de progresso científico — perdem a sua legitimidade e afastam profissionais que nelas poderiam encontrar um espaço genuíno de crescimento e de debate.
Mesmo sociedades consolidadas por vezes atravessam fases de personalização excessiva e de uso estratégico da posição associativa para reforço de estatuto. Comportamentos centrados na criação e manutenção de redes de influência ou na distribuição simbólica de favores desvirtuam o espírito associativo. O associativismo científico deveria ser, por natureza, um exercício de humildade intelectual e de serviço; contudo, quando se transforma num palco de visibilidade controlada, perde o seu propósito e reduz-se a uma encenação de prestígio. O narcisismo institucional — frequentemente mascarado de dinamismo e iniciativa — é, talvez, um dos maiores obstáculos à regeneração da vida científica.
A revitalização das sociedades científicas passa então, inevitavelmente, pela criação e reactivação de sinergias desinteressadas com outras instituições promotoras de conhecimento e formação contínua tais como a Ordem dos Médicos Dentistas, as universidades e outras sociedades. É crucial abrir espaço à participação de estudantes, jovens clínicos, docentes e investigadores, promovendo uma verdadeira continuidade entre a formação académica e a prática profissional. Só através desta ligação orgânica será possível renovar ideias, garantir relevância científica e formar novos líderes associativos com espírito de missão e sentido de ética. Líderes que vejam na pluralidade, na partilha e na delegação não uma ameaça, mas a forma mais nobre de multiplicar capacidades e perpetuar o valor institucional — livres da tentação de usar as estruturas que dirigem como extensão do próprio ego.
Reacender o valor das sociedades científicas exige, acima de tudo, liderança ética e visão colectiva. Implica independência, transparência, partilha e responsabilidade. Exige líderes que saibam inspirar, escutar e unir — não dominar. Se conseguirmos recentrar estas instituições naquilo que lhes dá legitimidade — o avanço da ciência e o serviço à profissão —, estaremos não apenas a honrar a sua história, mas a contribuir para um futuro mais coeso, participativo e digno para a Medicina Dentária em Portugal.