02/10/2020
Relação entre terapeuta e cliente: Armadilhas .
Leia com atenção.
Pessoas normais demais não se tornam nem terapeutas nem curadores. A experiência mostra que os melhores terapeutas são aqueles que conhecem o lado sombrio da alma e são capazes de contorná-lo em benefício do próximo. Pessoas muito normais são bem anormais: quando se revestem de si próprias dentro de um esquadro aparentemente correto demais e sem possuírem dilemas, elas sinalizam que carregam, em si, diversos aspectos não trabalhados. A condição humana é profunda, não pode ser rasa. Vivenciar a humanidade tem a ver com a capacidade de se relacionar com a complexidade da existência e, então, se angustiar. No campo da cura e da terapêutica as pessoas mal trabalhadas podem ser comparadas com produtos de perfumaria de alto risco alergênico.
Muitos terapeutas e curadores iniciaram a jornada pessoal a partir da própria dor e da família disfuncional que tiveram: pretendiam fazer funcionar direito aquilo que para eles deu errado. No entanto, isso explica os determinantes do início e não deve ser a tônica das etapas posteriores pois algum amadurecimento se faz necessário à pessoa do terapeuta/curador. Se este não for capaz de ter um relacionamento correto com a a própria família, ele não será capaz de estabelecer uma relação adequada com os clientes ou aprendizes.
O trabalho de constelações familiares permite que vejamos o cenário maior da cura e qual o lugar que devemos ocupar na família. Isso abre muitas portas mas também aponta para a premência de experimentar graça e manter uma postura de humildade na atividade de cura. Do ponto de vista do terapeuta, uma vez que ele tenha aceitado que ele é do jeito que é, ele se torna capaz de abordar os clientes em pé de igualdade. Quando o terapeuta está motivado a corrigir os erros do passado pessoal e defensivamente se colocar acima dos clientes, na posição de quem "sabe o que é melhor", ele acaba por tirar-lhes o poder do qual precisam para se manterem no processo de amadurecimento.
Não estamos na vida para curar ou salvar o planeta nem estamos aqui com uma missão divina superior. Se alguma dessas coisas precisa ocorrer, não será sozinho que ela será realizada. As complexidades são imensas e a humildade do terapeuta mostra que ele é bem pequeno frente a elas. Certos terapeutas parecem ser onipotentes e não perceberem isso, se colocando na posição de gurus, guias ou quase-deuses. Na verdade, somos terapeutas porque nos sentimos melhor fazendo isso e, se somos honestos quanto a nossa verdadeira motivação de trabalho nas artes da cura, prestamos um serviço melhor sem almejar salvar clientes, pessoas, planetas ou nações. Simplesmente honramos o momento no tempo em que estamos e damos uma mão quando isso nos é solicitado.
Desse processo de focar na honesta motivação, nos libertamos do peso das opiniões positivas e negativas dos outros: simplesmente fazemos o nosso trabalho porque este é o chamado do agora e estamos alinhados com as forças que estão por detrás disto. Sem a atitude correta, não há alinhamento com essas forças: pode usar a técnica que for e ainda assim não dará certo. Quando se busca aprovação, emanando o conceito de ser especial ou diferente, escapa a real essência de quem a pessoa realmente é, e ela se esconde por detrás de camadas de máscaras que cria. Tudo isso é um movimento de um ego narcísico que oculta um eu real muito prejudicado.
Ser um terapeuta não torna ninguém especial. A bem da verdade, as pessoas mais comuns do planeta alcançaram o extraordinário, sem caírem na armadilha de se verem como especiais: simplesmente fizeram o que fizeram porque era da natureza delas fazê-lo. Isso se aplica a Gandhi, Madre Teresa, Chico Xavier, Nelson Mandela e outros tantos: pessoas comuns, com problemas comuns mas que alcançaram coisas incomuns.
Como terapeuta é importante estar consciente do engano e do aprisionamento contido no glamour espiritual. Como que esse terapeuta se apresenta ao mundo? Com um estilo de roupa que virou uniforme, uma roupa de s**o ou uma calça tipo gênio-da-lâmpada que emana poderes e status espiritual ou usar óculos para chamar sobre si uma imagem de autoridade sábia, uma espécie de Gandhi fake? Será que ele insiste em modos particulares de comer ou de viver supostamente mais espirituais que as maneiras cotidianas?
O importante é o terapeuta ser autêntico, ser humano ao invés de se elevar acima do mundo ao qual serve, sem se conformar aos ideais e às imagens que tentam exprimir ao mundo que ele é, de alguma forma, especial ou diferente.
Uma das contradições da vida é que a não-conformidade cria as próprias regras sobre o que deveria ser não-conformidade: muitos acreditam que se você é um terapeuta ou curador, você é obrigado se conformar ao vegetarianismo ou viver "uma vida simples". Em foco aqui não está o vegetarianismo, mas a declaração marqueteira a respeito das expectativas espirituais e a pressão de ideias típicas de conformidade sobre a expectativa das pessoas sobre como um terapeuta deveria ser.
O antropólogo Lévis-Strauss abordou essa questão ao apresentar o conceito de eficácia simbólica, que tem a ver com o poder da sugestão de quem busca a ajuda de um xamã. O buscador traz a expectativa de conformidade de que o xamã será mais ef**az se tiver sido referenciado por outros consulentes, residir no meio da floresta e se for preciso o consulente abrir picadas no meio da mata para chegar até ele; e se, na consulta, o xamã dançar e chacoalhar maracas; e depois receitar coisas estranhas. Para Lévis-Strauss, a eficácia simbólica seria menor se o xamã fosse alguém que morasse no centro de uma cidade grande, se vestisse como a maioria, não receitasse nada de estrambólico e que poucos tivessem ouvido falar. Tudo isso é um processo mental que pouco tem a ver com a força de cura, apenas é a projeção da conformidade do consulente tentando separar o terapeuta do mundo para torná-lo especial.
Paradoxalmente, longe de estarem no meio da mata, as receitas de iluminação estão em qualquer banca de revista: coma-isto-e-se-conecte-com-não-sei-o-quê; vista-assim-e-emane-a-luz-da-deusa-não-sei-quem; respire-assim-e-se-transforme-em-um-ser-iluminado; faça-a-dança-do-pé-direito-dos-homens-da-tribo-sei-lá-qual-e-se-conecte-com-o-sagrado-masculino. Nada disso tem a ver com o que é ser terapeuta ou curador. Iluminação não se compra, se conquista por meio de reflexão derivada da angústia. Tampouco é algo que advém da mudança da dieta.
Um terapeuta não tem que ser vegetariano; ele tem o direito de saber escolher a própria dieta que julgar ser mais adequada ao seu corpo. Não existe vestuário de terapeuta/curador que dê poderes como a roupa do Batman ou o laço dourado da Mulher Maravilha. Ele não deve se conformar com a vaidade embutida na conformidade do "faça-algo-estrambólico” e pareça ser alguém especial. De fato, quem se conforma a essas coisas é um ser bem comum pois sofre de ilusões ainda mais comuns. Em outras palavras, é alguém medíocre.
A bem da verdade, se alguma elevação for necessária, ela deve ser como a flor-de-lótus - uma das mais belas flores mas que nasce no meio do lodo. A vida cotidiana é o humilde lodo. Temos que ser úteis na humildade, no meio da poluição, da maledicência dos outros, com as contas vencendo, sem conformidades e sem formulazinhas de iluminação adquiridas de banca de revista ou em blog de internet.