13/05/2024
“Mais tarde nessa noite, as linhas correm na página, eu escrevo e é um fluxo, uma evidência, escrevo porque estou profundamente afetada. Devo dizer que tenho dois cadernos de campo. Um é diurno. Ele é repleto de notas esparsas, descrições minuciosas, transcrições de diálogos ou de falas, opacos na maioria das vezes, até que eu volte para casa e confira a eles uma ordem; até que eu ordene esse amontoado de dados deta-lhados para fazer deles algo estável, inteligível, compartilhável.
O outro é noturno. Seu conteúdo é parcial, fragmentário, instável. Eu o chamo de caderno preto, porque não sei muito bem o que vai dentro dele. O caderno diurno e o caderno noturno são a expressão da dualidade que me corrói; de uma ideia do objetivo e do subjetivo que preservo apesar de mim mesma. Eles são respectivamente o de dentro e o de fora; a escrita automática, imediata, pulsional, selvagem, que não tem outra vocação além de revelar o que me atravessa, um estado de corpo e alma num dado momento, e aquela, paradoxalmente menos bem-acabada, porém mais controlada, que será trabalhada em seguida para se tornar reflexiva, e que terminará nas páginas de um livro. Obviamente, depois do urso, nessa noite foi o caderno preto que eu peguei.”
Não sei como indicar essa leitura de uma forma que seja possível entender a dimensão desse relato. Nastassja nesse trecho fala de uma escrita selvagem, que me remete a escrita de Clarice, sempre falando daquilo que atravessa e dilacera, deixa em pedaços a encontrar uma maneira de realizar uma nova cola, um novo laço. A escrita funciona nesse lugar para ambas, seja falando de personagens fictícios ou de relatos daquele excesso de real vivido.