07/02/2021
O querido amigo, analista e psiquiatra J. James de Castro Barros, foi examinador de Josiane Neri na banca de conclusão do Propeadeuticum do Curso de Formação de Analistas, do Instituto C. G. Jung de MG. Na ocasião, proferiu este belo discurso que se segue:
Comentário sobre a monografia AINDA É TEMPO, de Josiane Lina da Silva Neri.
J. James de Castro Barros 29/01/2021 11:00
Jamais escreveria esta Monografia. Pois quando eu era jovem, com a idade que tem hoje sua autora, eu jamais escreveria uma Monografia como esta. Não esperem que cometa a indiscrição de revelar minha idade... Nem a da jovem.
Essas afirmativas iniciais não constituem crítica à Monografia - que apresenta tão boas quanto preciosas qualidades - pelo contrário, certamente esses valiosos aspectos se revelarão aos leitores atentos.
Do jovem é costume esperar-se o culto de idéias gerais muitas vezes havidas como bases pétreas e bastas. Assim, é verdade que eu não teria escrito essa monografia quando tinha a idade de Josiane, porquanto a elegância de Apolo, a plurivalência das Musas, a exigência de Hera, a fertilidade de Deméter, o poder democrático de Zeus, nem a prevalência do Mito não haviam se manifestado para mim com a intensidade que manifestam à jovem Autora.
Por falar em Musas... Mais do que por linguagem conceitual e teorias elaboradas modernamente, sou conduzido hoje pela perspectiva da mitologia helênica com suas imagens, acontecimentos, deuses, semideuses, heróis, musas, humanos e outros seres multívocos, existências desde a antigüidade impossíveis de tomar-se literalmente, mas cuja pujança é capaz de compensar a objetividade, frieza e impessoalidade da Ciência.
Recolhida na antiguidade por Homero (séc.IXaC), Hesíodo (séc.VIIIaC) e pelos Orficos (sec.VIaC), essa grandiosa mitologia surgiu de modo não intencional similar aos Contos de Fadas, muitos desses igualmente recolhidos entre o povo pelos irmãos GRIMM (1838). Mitos e Contos também são similares à Alquimia, cujo surgimento alguns estudiosos remontam a China antiga e Alexandria no antigo Egito. Os vários tratados dessa Arte Secreta que floresceu principalmente na Idade Média, podem, entretanto, ser atribuídos ao propósito, autoria e intencionalidade dos praticantes.
Um de seus aforismos afirma que Aurum nostrum non est aurum vulgi e que Ordinaria vita nostra non est. O filósofo hermético passando pelo nigredo; mors e putrefactio, tenta chegar ao albedo/rubedo, ouro e elixir da longa vida, mas pode ficar fixado em qualquer dessas fases. Sabe que o caminho passa pelo VITRIOL, que corresponderia a nossa nekya. De qualquer forma, ou talvez por isso mesmo, o estudo da Arte Hermética, com seus belíssimos símbolos e figuras exóticas, suas linguagens e procedimentos abstrusos, muito ajudou a JUNG em sua abordagem fenomenológica da psique.
A Mitologia Grega, com seus seres, seu universo povoado de imagens, intrincado de mistérios, foi crença entre os helenos, e um dos pilares de nossa cultura ocidental por isso chamada greco-judaico-cristã. Para a Psicologia Analítica, principalmente para a vertente hillmaniana ou arquetipalista, esse conjunto de seres e mitos nos reapresenta um panorama metafórico mais aceitável do universo psicológico, da interioridade de nós mesmos e do mundo. Seres míticos regem a vida, afetam o trabalho do analisando e o cuidado do analista. Contudo a pouca visão de algumas pessoas levam-nas a dizer umas às outras serem autoras das próprias vidas e que mitos são patranhas, nada representando. O vidente sorri.
Os gregos tinham padrões culturais bastante severos dos quais os mitos faziam parte. Na atualidade da cultura ocidental a mitologia helênica foi um tanto esquecida, uma pena, pois viajar pela mitologia relativiza e ameniza a dominância das tradições culturais, sendo assim fundamental para o equilíbrio geral. Por outro lado, qualquer alteração dos costumes, valores comuns e padrões culturais abalam não só o equilíbrio individual, como desorganiza a família, sociedade e o estado. Uma pessoa que não perceba estar a desviar-se dos padrões culturais, quando os infringe, é psicopata ou psicótico, um matusquela.
Na trabalhosa dedicação à Monografia Josiane tem o grande mérito de ouvir, estudar, atender, escrever e reverenciar as Musas que a inspiram, guiam e de mostrar gratidão a seus ilustres preceptores e analistas do Instituto C. G. JUNG de Minas Gerais que esmeram por bem ajudar.
Logo na Dedicatória sua sensibilidade se revela em delicado senso humor. O texto encadeia temas com a fluidez dos sonhos, o encanto dos sentimentos, a beleza dos Mitos e da Poesia. Sua linguagem elegante, coerente e escorreita preserva a magia, o clima onírico de mistério num preito ao encantamento do mundo psíquico que anda paralelo ao respeito e cuidados exigíveis do analista.
No conto, a personagem indo além dos padrões costumeiros evidencia sua não integração e tem essa infração punida com a morte. Mergulhada em águas profundas sofre interações que a iniciam na transformação. Trazida à superfície inicialmente causa horror, mas, cuidada, a transfiguração prossegue até o feminino e masculino (mercurius et sulfur) unidos para cumprir o mistério da viagem final.
A Autora mostra neste conto inúmeras possibilidades dinâmicas das imagens e do trajeto da alma em análise que revela a capacidade interpretativa de quem, como a ela, as Musas inspiram. O mergulho em águas profundas, metáfora da imaginação ativa, mostra o praticante entre corajoso e amedrontado iniciar a catábase e depois a anábase, nessa viagem necessária e arriscada. Importante o cuidado do analista nessa busca ousada e incerta sobre a falta e o vazio, nesse confronto com imagens tranqüilas ou aflitas, nesse aproveitar dos diálogos inevitáveis e nesse desejo de se entregar ao fascínio da profundeza.
Não é a pessoa quem decide fazer análise, mas, como a JUNG, a psique obriga. Essa viagem implica ligação com os deuses para tentar não se perder nos diversos caminhos possíveis, nem nos muitos descaminhos da psique. Nesse mergulho necessário, arriscado, às vezes horroroso, nojento e repulsivo, é patente o partilhamento com seres míticos. Por exemplo, Hermes, o deus dos caminhos, considerado tutelar da análise. Ele, para quem nenhuma estranheza é estranha, faz conexão entre as divindades e entre estas e os humanos. Favorece descobrir, interligar e relacionar elementos díspares, em sua conexão com o furto e o engano encoraja abordar aspectos havidos como condenáveis. Dioniso, deus ctônico da fertilidade, do vinho e do entusiasmo, em criança renasceu após ter sido massacrado, kdespedaçado, cozido em caldeirão e devorado pelos terríveis Titãs. Ele, libertador e iniciador das almas, também é seu condutor dançarino nos prados subterrâneos. Outro deus das escuras profundidades que guardam riquezas imensas é Hades cujo reino tem seu próprio nome e situa-se no “seio das trevas brumosas” das entranhas da terra onde se acumulam tesouros como os sonhos, fantasias e onde os mortos são julgados e encaminhados ao Tártaro ou aos Campos Elíseos. O deus que tudo une e transforma é Eros das múltiplas genealogias, infantil, alado, belo, corajoso, audaz, pródigo em ardis, invenções e expedientes. Casado com a princesa e depois deusa Psique, é considerado princípio cósmico da atração, amor e amizade. Quando suas flechas atingem o coração, sua tocha inflama a pessoa inteira de alegria, paixão, prazer e dor. Enfim, sem Eros, Psique não tem vida.
JUNG se afirmava empírico, por abordar do ponto de vista fenomenológico os acontecimentos íntimos e, apoiadas na observação da realidade objetiva, suas abordagens não são havidas como filosóficas. Seu cuidado para observar e expor tais fatos e considerações evidencia o respeito que o levava a defrontar-se com a interioridade. Esse respeito lhe dava objetividade mantendo-o diferenciado dos fatos e imagens, não lhe permitindo confundir-se com eles, nem ter certezas outras além da existência desses fatos e imagens. Assim, podia ficar confuso, mas não podia ser sambanga e deixar fundir-se a eles.
Depois de cada nekya JUNG iniciada em 1913 retomou seus antigos afazeres familiais, domésticos, sociais, atividades de vida, trabalho e lazer como antes. Examinou fatos, imagens e resultados por diferentes ângulos, não se entregando à literalidade manteve-se atento à interioridade e sobretudo, isto é fulcral, à perspectiva psicológica,
Esse foi o trabalho ao qual JUNG se dedicou por dezenas de anos, na tentativa de expor ao público suas experiências, constituídas de vivências íntimas, ocultas, individuais cujas minúcias o pudor torna mais secretas. Para não expor tais detalhes JUNG adotou abordagem teórico-conceitual que, embora possa esmaecer os fenômenos, por seu caráter apotropaico encoraja e ameniza as vivências dolorosas do praticante, tanto quanto relata através do estilo científico dominante àquela época.
A observação, apreciação e descrição de fatos íntimos, de forma similar à realização das obras de arte, é interminável, dadas a suas multifárias e quase infinitas possibilidades. Exato essa cuidadosa abordagem, por longos anos elaborada para tentar expor fatos empíricos da intimidade, tornou-se a obra psicológica que veio a ser entendida por muitos de seus discípulos como o grande fundamento teórico e conceitual da Psicologia Analítica e da Análise.
Tudo o que a prática da Análise encontra está na profundidade da alma, não é criado, mas existe na atemporalidade da constituição autóctone da psique: imagens, cenas, vozes, mundos lógicos e absurdos, fatos extraordinários e comuns. Com qualquer nome que lhe seja dado, é este tudo que nos cria, constitui, dirige e do qual somos filhos. E essa concepção permeia este trabalho de Josiane.
Espaço de crescimento e fortalecimento de novos propósitos existenciais.
Psicoterapia, orientação profissional e palestras.