18/05/2020
Já imaginou se o isolamento durasse a vida inteira? É isso que o manicômio faz.
Estamos em crise. Ainda que estejamos apenas começando a compreender os efeitos que a pandemia da Covid-19 impôs ao mundo inteiro, quase de uma só vez, já é possível dizer: esta é a maior e mais profunda crise sanitária, econômica, política e social das nossas vidas. Somente uma resposta robusta e conjunta entre Estados e sociedade civil pode prevenir uma crise humanitária em escala global, mas o que temos percebido é a histórica denegação de direitos básicos assumindo dimensões cada vez mais explícitas.
À medida que o número de casos subia e mais países eram atingidos, várias pessoas que tinham condições ao redor do mundo começaram a estocar suprimentos, muitas vezes de forma beirando o irracional. Nas redes sociais, as imagens de sistemas de saúde (em especial os da Itália, Espanha e Equador) colapsando assustaram.
Grande parte da população percebeu a necessidade de isolamento social como forma de proteção. Algumas pessoas tiveram condições de adotar esta prática voluntariamente, enquanto outras se desesperavam sem saber o que fazer. A pandemia escancarou a desigualdade social que aflige nosso país.
Milhões de trabalhadoras(es) brasileiras(os) se viram diante de uma brusca piora de suas já difíceis condições de vida. Estamos no Brasil, o 2º país mais desigual do mundo, de acordo com o último Relatório de Desenvolvimento Humano da Organização das Nações Unidas (ONU). A taxa de desemprego oficial já atingia 12,3 milhões de pessoas em fevereiro, influenciada pelo corte de postos de trabalho nos setores de construção, indústrias, serviços domésticos e no ramo de transportes particulares, e subiu para 12,9 milhões em março (última divulgação do IBGE). Profissionais liberais e em regimes informais de contratação ficaram à mercê da própria sorte. Os efeitos da desregulamentação do trabalho, do desmonte dos sindicatos e de imensos retrocessos promovidos pelas Reformas Trabalhista e Previdenciária, associados ao desmonte das políticas públicas, ficaram ainda mais evidentes.
O número de pessoas em situação de rua não parou de aumentar e medidas de enfrentamento a suas duras realidades se resumiram quase que exclusivamente à solidariedade da sociedade civil, sem apoio consistente do poder público.
A “necropolítica”, termo cunhado pelo historiador camaronês Achille Mbembe que significa, literalmente, política de morte, faz-se presente nas ações ou omissões do Estado que determinam qual parcela da sociedade pode viver e quem pode (ou deve) morrer, e também na escolha forçada que profissionais de saúde precisam fazer na hora de tratar as(os) pacientes diante da falta de estrutura e equipamentos.
Agora, durante a pandemia e em nome de “cuidados às populações vulneráveis”, instituições e práticas manicomiais podem se acentuar. Um exemplo é a opção de diversos setores de, sob a desculpa do “confinamento”, propor a todo custo internações de pessoas em uso abusivo de álcool e outras dr**as em instituições totais como as comunidades terapêuticas.
Tal ação acentua uma lógica que é dissonante (e por vezes antagônica) das diretrizes da Reforma Psiquiátrica, asfixiando por meio da dotação orçamentária insuficiente os equipamentos e dispositivos que deveriam garantir a existência e o fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial com forte interlocução com a atenção primária à saúde. Fomenta-se assim um mercado que se alimenta da crise sanitária que o país atravessa e agudiza ainda mais os efeitos do controle e gestão do Estado sobre os corpos, ao mercantilizar a saúde e o cuidado, ao “naturalizar” práticas higienistas e de gentrificação social.
Sim, estamos em crise.
E, para algumas pessoas, esta é uma excelente época para os negócios e para o fortalecimento da lógica manicomial. Em um país em que as crises se sucedem e o Estado de exceção é regra, talvez soe como natural a lógica do manicômio que transforma a intervenção na crise em tratamento crônico.
O Estado necropolítico que escolhe quem atravessa a pandemia com conforto e segurança é o mesmo Estado manicomial que determina que os corpos “dissonantes” devem ser trancafiados em manicômios pela vida inteira – por critérios que muitas vezes dizem mais respeito à raça, à condição socioeconômica e à possibilidade de acesso à serviços.
Se tantos repetem que o mundo nunca mais será o mesmo, qual é então o mundo que queremos? Deixar para projetar – e, por que não, sonhar? – esse mundo apenas depois que a pandemia passar pode ser tarde demais. Imaginar hoje como será o amanhã, disputar essas narrativas e utopias em defesa da sociedade é também um gesto ético e político. E, mais do que isso, é fundamental reatualizar o compromisso social da Psicologia com ações concretas e conectadas à realidade da população brasileira.
Nós, Psicólogas e Psicólogos, somos sonhadoras(es)-do-mundo-pós-manicômio. Ao defendermos o fim do horror manicomial, com o derrubamento de grades e muros altos, sonhamos com algo maior do que um “novo normal”, uma sociedade com pluralidade e onde caiba toda a diversidade. Defendemos laços e encontros verdadeiramente solidários, sob a égide do cuidado e da dignidade humana.
Neste 18 de maio, Dia da Luta Antimanicomial, o CRP-PR quer ecoar as vozes de muitas trabalhadoras e trabalhadores da saúde mental, usuárias e usuários dos serviços. Convidamos você a voltar a sonhar e colocar em prática os princípios que moveram a Reforma Psiquiátrica.
Solidariedade, cuidado, Direitos Humanos, dignidade, afeto, comunidade, território e alteridade são os nossos recursos para enfrentar o “normal”. Se não fizermos isso, o “mundo pós-pandemia” pode aprofundar brutalidades, violências e desigualdades sociais, nos levando a crises ainda mais agudas. Que usemos esse momento para nos mobilizarmos a pensar e criar estratégias para o fortalecimento das nossas redes de cuidado e afeto, e não para a construção de muros.
Se a pandemia não nos deixa dormir, não deixaremos de sonhar: convidamos você a destruir os muros, tanto os do manicômio quanto os que nos separam entre “pessoas que podem se manter protegidas” e outras que precisam arriscar suas vidas para manterem um mínimo de dignidade. Venceremos!
Leia o texto completo: www.crppr.org.br/18m2020
Descrição da imagem: fundo laranja e moldura branca. Lê-se: “Já imaginou se o isolamento durasse a vida inteira? É isso que o manicômio faz. Loucura não é um vírus! Trancar não é tratar! | 18 de maio Dia da Luta Antimanicomial”. Fora da moldura há pessoas em diversas atividades; dentro há uma pessoa só. Na porção inferior da arte está a logo do CRP-PR.