30/03/2025
Oliver Harden
A célebre máxima de Guimarães Rosa, “Viver é um rasgar-se e remendar-se”, encerra, em sua síntese brutalmente lírica, uma compreensão profunda e paradoxalmente serena da existência humana. Longe de enunciar uma resignação melancólica, a frase configura-se como expressão de uma ontologia do movimento, um convite à aceitação da impermanência, da dor e da reconstrução como constitutivos do viver.
Ao dizermos que viver é rasgar-se, evocamos a experiência da fratura, o trauma, a perda, a decepção, a interrupção do fluxo imaginado. Trata-se do momento em que o tecido da alma se desfaz, em que a narrativa do sujeito encontra uma dissonância que não pode ser ignorada. O remendar-se, por sua vez, não é um simples retorno à forma anterior, mas a tentativa sempre imperfeita de recompor o eu com as marcas da ruptura. A existência humana, nesse processo, não se dá por continuidade linear, mas por interrupções e retomadas, por desconstruções e reinvenções.
Do ponto de vista psicológico, a metáfora aponta para o conceito fundamental de resiliência, não como uma volta à condição anterior, mas como a capacidade de incorporar a experiência da dor na tessitura da subjetividade. A psique humana não se estrutura como um organismo estático, mas como um campo dinâmico, permanentemente atravessado por afetos, choques e revisões. A metáfora do rasgar e remendar ecoa a teoria winnicottiana do “self verdadeiro e falso”, na medida em que o sujeito é convocado, ao longo da vida, a preservar uma coerência interior, mesmo frente a forças desintegradoras.
Filosoficamente, a expressão rosiana encontra eco nas concepções do devir que permeiam tanto o pensamento oriental quanto a tradição ocidental. O budismo, por exemplo, funda-se sobre o princípio da anicca, a impermanência de todas as coisas. Nada permanece, tudo se transforma, tudo é fluxo. O sofrimento surge, em grande medida, da ilusão da estabilidade. Assim, “rasgar-se” é aceitar que não há um estado de plenitude duradouro, e “remendar-se” é o gesto consciente de recompor-se no fluxo ininterrupto da mudança.
Sob o prisma da psicanálise, poderíamos ainda reler essa metáfora à luz das teorias freudianas do recalque e da elaboração. Para Freud, o sujeito é atravessado por tensões pulsionais que jamais se resolvem plenamente. Os traumas que nos rasgam deixam resíduos inconscientes que insistem em retornar sob a forma de sintomas, sonhos ou atos falhos. O trabalho analítico, por analogia, o ato de remendar, não visa eliminar o trauma, mas reinscrevê-lo em um campo simbólico que permita algum grau de elaboração e apropriação subjetiva. A identidade, nesse contexto, é sempre uma costura precária entre aquilo que se perdeu e aquilo que se tenta significar.
O que se delineia, portanto, é uma antropologia do inacabamento. O ser humano é um ser por fazer-se. Não há essência conclusa, mas uma constante (re)construção de si mesmo diante das contingências. O “remendar-se” não é a negação da dor, mas o reconhecimento de que a dor pode ser transfigurada em sabedoria, que a perda pode ser incorporada ao tecido da vida como bordado singular, como marca e como memória.
Neste sentido, a frase de Guimarães Rosa assume uma ressonância existencial inescapável. Ela não apenas descreve a experiência de viver, mas propõe uma ética, a de não fugir da ruptura, a de não camuflar a fissura, mas de encará-la como parte constituinte do ser. Viver, enfim, não é manter intacto o que se é, mas aprender a conviver com os próprios remendos, dignos, visíveis, necessários.
Assim, a metáfora do rasgar-se e remendar-se transcende sua aparência simples e revela-se uma chave hermenêutica para compreender a fragilidade e a potência do humano. Em tempos que tendem à ilusão da perfeição contínua, à negação do sofrimento e à obsessão por performances impecáveis, Guimarães Rosa nos lembra, com sua lucidez poética, que é no inacabado que reside a verdadeira condição humana, e que há uma sabedoria profunda na arte silenciosa de costurar-se, a cada queda, com os próprios fios da existência.
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