12/07/2025
O Desafio de Ser Brasileiro: Restaurar a Memória, Curar o País
Por Vitor Pordeus
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Vivemos um momento decisivo da história do Brasil. Um tempo em que se torna impossível adiar a pergunta essencial: quem somos nós, brasileiros? A resposta não está nas manchetes, nem nas redes sociais, nem nas estatísticas que nos reduzem a consumidores, doentes ou fracassados. A resposta está na memória que ainda pulsa no corpo, na voz e nos encontros entre nós. A resposta está nas obras esquecidas, nas vozes silenciadas, nos gestos de cura que nossa própria história produziu — e que precisamos urgentemente lembrar.
O Brasil como ferida e potência
O Brasil sempre foi terra de tensões. Um país fundado no estupro, no extermínio e no trabalho forçado — mas também no canto, na dança, na resistência dos povos originários, dos negros, dos pobres, dos loucos, dos poetas. Essa contradição funda nosso sofrimento e também nossa possibilidade de transformação.
Hoje, o que vivemos não é apenas uma crise econômica ou política: é uma crise de sentido, de pertencimento, de memória. Vivemos sob uma espécie de amnésia forçada, onde tudo o que é brasileiro — quando ousa ser belo, profundo, científico e libertador — é apagado, deslegitimado ou destruído.
A sabotagem da inteligência brasileira
Por que nomes como Nise da Silveira, Nelson Monteiro Vaz, Mario de Andrade, Lygia Clark, Darcy Ribeiro, Lélia Gonzalez, Leon Hirszman ou Lula Wanderley ainda não ocupam o centro dos currículos escolares e universitários? Por que cada vez que uma política pública tenta dar continuidade a essas obras — no SUS, nas escolas, nos teatros, nas comunidades — surgem forças violentas para desmontar, atacar e perseguir quem ousa lembrar, cuidar, transformar?
A resposta é dura, mas clara: há uma estrutura psicopolítica profundamente doente no Brasil, que se alimenta da destruição do que é vivo, sensível, autêntico e coletivo. Uma estrutura que se esconde atrás de cargos públicos, concursos viciados, verbas desviadas, títulos coloniais, currículos importados. Uma estrutura que teme profundamente a liberdade do povo brasileiro.
A memória como ato de cura
Mas o Brasil também já produziu caminhos de cura. Nise da Silveira, com seu trabalho entre os “loucos” do Engenho de Dentro, nos mostrou que a arte pode ser mais terapêutica que a camisa de força. Mario de Andrade, com sua antropofagia cultural, nos ensinou que nossa cultura é viva porque sabe devorar e reinventar. Darcy Ribeiro sonhou com uma universidade que fosse popular, mestiça, inventiva. Lula Wanderley criou um espaço psiquiátrico onde o tempo aberto e o corpo expressivo curam mais que diagnósticos.
Essas obras não são passado. São futuro possível. Mas só se nos dispusermos a lembrar com o corpo, com a voz e com os outros. Porque lembrar, no Brasil, é resistir. É curar. É revolucionar.
O que fazer?
1. Reconhecer o apagamento como projeto de dominação
A ignorância histórica sobre nossos próprios mestres não é acidente. É projeto. Reconhecer isso é o primeiro passo para desmontá-lo.
2. Formar redes de memória e ação coletiva
Precisamos construir universidades populares, clínicas artísticas, escolas de rua, assembleias culturais. Locais onde o saber brasileiro possa viver, se transmitir e se reinventar.
3. Internacionalizar a nossa sabedoria
Mostrar ao mundo o que produzimos. Traduzir Nise da Silveira, filmar Hamlet nos hospitais, publicar nossos saberes em revistas internacionais. E trocar experiências com outros povos oprimidos que também reinventam a vida.
4. Reocupar os espaços públicos com beleza e verdade
Ocupar o SUS, as praças, as escolas e os teatros com poesia, ciência, saúde e afeto. Mostrar, na prática, que há um outro Brasil possível — e que ele já existe em cada cura que realizamos juntos.
5. Cuidar dos que cuidam
Quem ousa curar o Brasil precisa de proteção. Precisamos cuidar dos nossos mestres vivos, garantir continuidade às experiências, criar redes de apoio jurídico, psíquico, político e afetivo para resistir à máquina de moer gente.
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Um chamado à consciência brasileira
Cada brasileiro, hoje, carrega em si esse chamado: lembrar quem somos, para curar o que sofremos. Isso não é um gesto individual. É um ato coletivo, radical, amoroso e necessário. Porque o Brasil que queremos — mais justo, mais criativo, mais livre — já foi sonhado, escrito, dançado, pintado e cantado. Só nos resta lembrar. E agir.
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“Curar é lembrar com o corpo, com a voz e com os outros.”
Este é o nosso desafio. Este é o nosso remédio.
Este é o Brasil que pulsa em nós.