01/06/2025
Sou médico. Servidor público. No SUS estou como especialista. Trabalho numa cidade - o Rio de Janeiro - onde o SUS já se encontra parcialmente terceirizado; um SUS cada vez mais frágil, remendado com contratos precários, com profissionais que chegam - alguns ótimos - mas que, precarizados, nem sempre f**am.
Na última sexta-feira, entre uma consulta e outra, ouvi falar da Medida Provisória nº 1.301/2025. Fui ler: nele se desenha um novo programa, o “Agora Tem Especialistas”. Nome que remete ao “Mais Médicos” que, logo de cara critiquei, mas depois que entendi melhor, apoiei...
Essa MP traz algumas novidades - troca de cargos para diminuir o custo de mais médicos especialistas, reorganização do Grupo Hospitalar Conceição sob regime CLT, flexibilizações, terceirizações via AGSUS...
A ideia de atrair especialistas com bolsas temporárias pode parecer uma boa solução para resultados rápidos. Mas, em relação ao que já existe no SUS, ou melhor, em relação ao que não existe, é como plantar raízes num solo movediço. Por exemplo, a Prefeitura do Rio, por cálculo eleitoreiro, usa a possibilidade de terceirização, aliada a capilaridade do SUS, como uma estratégia eleitoreira-clientelista. Até o desconhecido secretário de saúde de Paes foi eleito deputado através dessa artimanha. Por causa disso (por causa dessa artimanha) a “política” de Paes para o funcionalismo é a de confrontação e, quando há sorte, de abandono. Não é a falta de dinheiro em caixa que o impede de estabelecer um simples plano de carreira para os servidores cariocas. O objetivo quase pornográfico do simpático e midiático Prefeito é tornar a vida dos funcionários tão precária que a única saída seja desistir - e isso com muitos sorrisos e fachada de bom-mocismo.
O SUS terceirizado serve bem a políticos como Paes, mas será que serve bem ao povo? Um dos principais eixos de atuação do SUS supõe o vínculo com a população. Sem isso não se consegue promover socialmente a saúde como qualidade de vida. Então, como criar vínculo onde se semeia apenas rotatividade e precariedade?
Eu, que por infelicidade só tive prefeitos neoliberais como ‘patrões’ e que jamais tive acesso a um Plano de Cargos, Carreiras e Salários (PCCS), sei bem o gosto amargo de trabalhar quase uma vida inteira alimentado apenas pela vã esperança de um dia ser valorizado. A maioria daqueles que ingressaram no serviço público comigo e passaram no mesmo concurso já abandonou o SUS. Imagine então os terceirizados, quando perceberem que serão rapidamente descartados por uma lógica impiedosa de custo-benefício e clientelismo.
Dizem que haverá R$ 2 bilhões por ano para que hospitais privados atendam ao SUS. Tudo bem. Mas essa aposta em transferir recursos ao sistema privado - o mesmo que recentemente ajudou a eleger o bolsonarismo nos conselhos de medicina, o mesmo que foi cúmplice do cloroquinismo - pode até fazer sentido como articulação política, mas como princípio para a implantação de uma política pública de Estado, é um completo absurdo. Não duvido que venham resultados rápidos, resultados que não veríamos se dependêssemos apenas de prefeitos como Eduardo Paes. Mas nenhuma relação com empresários dessa estirpe golpista me deixaria tranquilo.
Entendi que apesar da MP 1.301 o SUS seguirá sendo gratuito, universal - Mas, minha angústia é que esses princípios estão cada vez mais restritos à teoria. Na prática, o sistema vem sendo gerido como uma empresa e empresas visam lucro, não equidade e justiça social. É o que já ocorre no Rio, e convenhamos: o Rio está longe de ser um exemplo a ser seguido pelo país.
Não sei, mas pior do que a mudança nos papéis e cargos é a mudança de espírito que essas relações com o setor privado produz. A saúde pública está virando prestação de serviço, ao invés de política de Estado. Cada vez mais terceirizada, fragmentada, vulnerável. E o que se perde, aos poucos, é a confiança. Confiança de quem atende e de quem é atendido. Um caldo de cultura para manter viva a chama negacionista…
Mas ainda acredito. Acredito porque vejo, todos os dias, o rosto de quem depende do SUS. E sei que se o SUS ainda resiste, é por nós - servidores que, apesar da desvalorização, seguimos aqui. Não por heroísmo, mas por compromisso. Por uma ética que aprendemos ao estudar - e nos deixar tomar - pela mesma ética de um Sergio Arouca.
A MP 1.301 pode até dizer que agora tem especialistas. Mas o que o SUS precisa mesmo é de especialistas que permaneçam. De trabalhadores com carreira sólida, com condições dignas, com estabilidade. Precisa de investimento direto na rede pública, não apenas no mercado da saúde.
O SUS é nosso. E defendê-lo não é resistência nostálgica - é dever ético. É a única maneira de garantir que saúde pública, gratuita e de qualidade não vire apenas uma lembrança remota.