18/10/2020
A falta de médicos suficientemente preparados para atender autistas é lendária. Todos sabem que essa é uma das principais causas de atraso no diagnóstico – ou de erros diagnósticos – com todas as implicações que já conhecemos. Mas não é só isso. A lacuna deixada pela falta de atendimento médico adequado, pela falta de informações seguras e referências sólidas para as famílias, é também uma das principais razões de vermos pacientes à mercê de tratamentos inadequados e de oportunistas.
Muita gente chega a pensar que a função do médico termina no momento que assina um papel com o código do diagnóstico (o famoso CID). Por incrível que pareça, já ouvi isso até de colegas médicos.
Não temos que nos conformar com essa situação. Sabemos das graves falhas na formação profissional; da falta de repertório para trabalhar em equipe; das limitações do serviço público ou mesmo dos convênios; da burocracia asfixiante; da impotência diante da ausência de atendimentos terapêuticos e educacionais para encaminhar o paciente e dos obstáculos no próprio âmbito familiar (negação, resistência, dificuldades de todos os tipos). Pra sermos honestos, ainda temos o viés dos ambientes de formação médica que incutem a negação da possibilidade de falhar. Sob esse peso, não são poucos os médicos que se refugiam numa atitude de arrogância e distanciamento para mascarar seu despreparo, perdendo chances preciosas de aprender. Reconhecer todos esses problemas é o primeiro passo para enfrentá-los.
O papel de um médico com conhecimento aprofundado no autismo vai muito além de assinar documentos e receitas (essa é a parte chaataaaa!). Vem comigo ver quanta coisa temos a fazer por nossos pacientes:
1 – Atenção à saúde geral. Garantir alimentação adequada, sono de qualidade, bons hábitos de higiene, rotina de atividades físicas e tratar os problemas de saúde são cuidados essenciais para a qualidade de vida de todas as pessoas. Mas, no caso dos autistas, é imprescindível conhecer as questões orgânicas, sensoriais, motoras e comunicativas que dificultam esses cuidados.
2 – Definir a necessidade de ampliar a investigação clínica. O diagnóstico do autismo é clínico (não depende de exames), porém, é comum haver associação com condições genéticas e orgânicas que precisam ser investigadas. Não há uma “bateria de exames” padrão a ser solicitada para todos. Temos que considerar manifestações clínicas individuais que sinalizem a necessidade de realização de exames genéticos, perfil metabólico, eletroencefalograma, exames de imagem (tomografia computadorizada ou ressonância nuclear magnética) ou outros.
3 – Identificar (e tratar quando necessário) condições neuropsiquiátricas coexistentes (também chamadas de comorbidades). Condições do neurodesenvolvimento apresentam uma sobreposição considerável com transtornos neuropsiquiátricos (TDAH, ansiedade, depressão, TOC, transtornos de humor, tiques, deficiência intelectual, transtornos de aprendizagem e outros).
Não raramente, são essas condições – e não o autismo em si – os maiores responsáveis pelas dificuldades e prejuízos enfrentados. Ignorá-las, sob qualquer pretexto, em qualquer planejamento terapêutico, é um dos maiores erros que se pode cometer. A atuação médica é essencial para fornecer subsídios para os outros profissionais que cuidam do paciente.
4 – Indicar tratamento medicamentoso. O uso de medicamentos pode ser muito benéfico em alguns casos: encontrar a substância e a dose mais favoráveis e monitorar seus efeitos são atribuições (nada fáceis, por sinal) do profissional médico.
5 - Reavaliar periodicamente. A frequência da reavaliação médica varia bastante de um paciente para outro, em função das particularidades de cada um. As reavaliações geralmente incluem análise de elementos diversos (relatos pessoais, exames de saúde geral ou específicos, relatórios escolares ou dos outros profissionais, observação direta do paciente). Elas nos permitem conhecer a evolução de cada um e detectar a necessidade de ajustes ou de buscar outros caminhos.
6 – Contribuir efetivamente para o planejamento terapêutico do paciente. Um profissional criterioso e seguro não limita-se a carimbar papéis.
A medicina já foi definida como ciência e arte. A parte da “ciência” praticamente dispensa explicações. Ainda assim, com a velocidade em que o conhecimento é produzido hoje, manter-se atualizado é um desafio constante. Neste sentido, a arrogância é uma arma apontada para a própria cabeça. Cuidar de pessoas que sentem, pensam e reagem de formas diferentes – e que são tão diversas entre si – exige que a gente aprenda com eles todos os dias.
A parte da “arte” é aquela que não se explica mesmo. Porque é algo pessoal e que só existe no espaço daquela relação humana que se estabelece a partir de uma interação profissional e que atinge um nível de intimidade único. É ouvir aquilo que não é falado, enxergar aquilo que é invisível. É o espaço onde a relação torna-se terapêutica por si só e transforma-se numa troca. Foi para representar essa troca, esse espaço da arte, que eu escolhi a imagem que acompanha meu texto hoje. Ganhei essas uvas lindas (e incrivelmente doces) nos momentos finais do meu último dia de trabalho antes do feriado. Já tive essa troca materializada outras vezes na forma de um pedaço de bolo de fubá, um artesanato, uma foto, um desenho feito especialmente para mim. Também na forma de um olhar, um abraço ou uma mensagem. Não dá pra abrir mão da arte.