30/03/2025
Cadê você, Rita?
Nem sei há quanto tempo havia ido a blocos de Carnaval aqui em João Pessoa. Mas, com tantas mudanças acontecendo, redirecionei meu carnaval para o tempo indeciso de nossa cidade. Percorri as ruas, não atrás de trio, pois os 40+ não me permitem tamanha peripécia. Graças à idade, não entro mais em ciladas, como pular ao lado de grandes massas sonoras, ou em qualquer lugar próximo a elas. O trio tem que passar rápido, de longe, ele f**a mais charmoso. Fui às Muriçocas e adorei, fiquei numa calçada vendo as fantasias e o passa-passa de gente bonita. Na sexta-feira, arrisquei o Cafuçu. E até me enfeitei, carnaval é festa de entrega. E, sobretudo, de esquecimento. Lembrar-se do que não presta, só em dias comuns. Carnaval combina com purpurina, nunca com aflição.
Sem opção de calçada, fiquei com os amigos em frente à praça Dom Adauto, ao lado de um palco que só tocava música brega. Que delícia! O som estava adequado, nada de trio elétrico. Vez por outra, passava uma troça. Depois, voltava o brega. Sem perceber, comecei a relembrar muitas músicas. Até cantei. E melhor: recordei.
Fui, de certo modo, uma criança privilegiada – e adolescente também. Não tenho, nessa fase, histórias de privação. Lá em casa, nunca faltou uma secretária do lar. Muitas delas reforçaram meus caprichos alimentares. Ou faziam além do que deviam, só para agradar a única criança da casa. Uma das músicas que ouvi naquela noite foi a de Alípio Martins. Lembrei-me de Rita, uma das moças que trabalhou em nossa casa. Era baixinha, musculosa sem nunca ter frequentado uma academia, sua genética era aquela. Músculos firmes e pele bronzeada. Usava um perfume forte da Avon, um batom daqueles vinte e quatro horas, presente de minha tia, diretamente do Paraguai, e saias curtíssimas. Ninguém se metia em seus gostos. O problema era só quando trazia o pão fresquinho da padaria: sentíamos o seu famoso “Toque de Amor”. Que perfume forte aquele! Minha tia precisou pedir para que ela comprasse o pão antes do banho. Ela não se importou.
Rita era amante da noite, frequentava uma danceteria, chamada Palácio do Forró. Namorava um motorista de ônibus, e se encontravam todas as sextas-feiras. Nesses dias, o toque de amor exalava do quintal ao jardim. Ela só ouvia rádio da AM. Nunca soube o porquê. Quando chegava da escola, os adultos da casa saíam para trabalhar, e ficávamos em casa, Rita e eu. Ela esquentava a comida e me contava sobre seu romance com Rogério. Nunca precisei ler revistas eróticas, pois ela me contava tudo o que eu tinha curiosidade de saber. Foi ela que me explicou por que as meninas usavam absorvente, muito melhor que as freiras do colégio em que eu estudava. Também me contou como nasciam os bebês. E o que Rogério fazia para ser inesquecível.
Quando ouvia suas músicas favoritas, ela cantava, e lavava a louça dançando. Rebolava da cintura para baixo, sem atrapalhar o serviço. Assim, ensaiava os passos para suas noites mágicas no Palácio do Forró. Cozinhava muito bem, nunca me esqueci do bife à milanesa. Titia reclamava, dizia que não sobraria nenhum enlatado, caso houvesse uma visita-surpresa. Rita gostava de comer bem e nos ensinou que a melhor alimentação é aquela feita com amor. Não adiantava reclamar: no fim, ela mandava na cozinha. Mas detestava as visitas-surpresa que chegavam do sertão. Emburrava a cara. Afinal, isso aumentava seu trabalho, e ela se atrasava para sua rotina noturna. Hoje, entendo que estava certíssima. Numa dessas vezes, atrasou-se e ficou de namorico com Rogério até o primeiro ônibus sair. Chegou em casa às cinco e meia da manhã e fazia café às seis e meia. Inventou de fazer tapioca, que todo mundo adorava. Assim, ganharia os patrões pela boca, e ninguém faria pergunta indiscreta. Mas o cansaço nem sempre perdoa, e, num desses dias, cochilou na beira do fogão e queimou a mão. Titia mandou que ela fosse dormir, e eu fui para a escola preocupada. Quando cheguei, lá estava ela, novinha em folha, dançando ao som de suas músicas da AM. Por vezes, me puxava para dançar. Ela também me ensinou a sacolejar o corpo. E me rodopiava em seus braços quando eu voltava de viagem. Algumas vezes, sem eu entender, f**ava com raiva. Uma das ocasiões, foi por ter me negado a escrever um cartão de amor para Rogério. Ela não sabia ler, nem escrever. Eu era só uma menina, queria brincar com minhas amigas, e ela só pensava em amar e ser amada. Rita foi uma referência para mim. Eu estava numa casa grande, com gente grande e sempre sozinha, mas, com ela, havia uma aura de segurança, e isso era bom.
Esse bloco me levou a um tempo único. Não por achá-la uma cafuçu. Afinal, Rita queria ser a Jô Penteado, personagem da Cristiane Torlone na novela A Gata Comeu. Usava o cabelo igualzinho. Lembrei-me dela no bloco, por causa das músicas, da dança e da alegria. E, desde aquele dia, me pergunto: cadê você, Rita?
Minha crônica está na revista, Correio das Artes. Jornal União.