03/09/2019
“Dr. Jung: [...] E se lembrarmos que Nietzsche sofria muito de insônia e sempre tinha que usar dr**as para dormir, compreenderemos que secreta paixão é revelada neste capítulo. Ele foi às aulas daquele famoso professor do bom dormir, porque ele mesmo delas muito necessitava. Há então uma possível explicação psicológica para a insônia de Nietzsche. Qual seria?
Miss Hannah: Ele se identificou com o espírito, que não necessita de nenhum sono.
Dr. Jung: Esta seria a consequência; não seria a causa psicológica. Embora, evidentemente, possamos nos identificar com a falta de sono do espírito, sendo que isto nos levaria a ideia de que não necessitamos de sono. Existem tais tolos. Eles pensam que as pessoas no futuro, através de dietas e treinamentos, chegarão à condição na qual poderão prescindir do sono. Pensam que isto seria um sinal de progresso para o homem. Treinam para ter apenas duas ou três horas de sono, ou preferivelmente uma hora, mas quando chegarem a hora nenhuma estarão mortos. Essa é a identificação com o espírito. Mas qual seria a verdadeira causa da insônia?
Mrs. Stutz: Ela vem do inconsciente.
Dr. Jung: Claro. Uma das causas mais comuns da insônia é a agitação do inconsciente; é como um mar tempestuoso.
Mr. Baumann: Ele não realizou o que estava escrevendo, assim o inconsciente ficou sobrecarregado.
Dr. Jung: Esta poderia ser a causa primária; quando mobilizado como estava ao escrever Zarathustra, seu inconsciente deveria estar fervendo. Além disso, se ele dá ouvidos ao seu, inconsciente, se é mais e mais forçado a prestar atenção às coisas que continuamente de lá emergem, irá associar-se intimamente com o inconsciente. E então há sempre, o perigo, quando a parede entre o consciente e o inconsciente se adelgaça, com buracos lá e cá, que então não haja mais uma real defesa contra esse movimento. O inconsciente pode assim irromper através desses buracos e causar condições peculiares no consciente. Verifica-se comumente em pessoas que entram numa espécie de colisão com o inconsciente coletivo sem saberem o que está acontecendo com elas, que eles têm um furo na parede liminar através do qual irrompe o inconsciente, como um mar que sobe e desce. E naturalmente elas não sabem o que é isso. Aconteceu com Nietzsche porque ele não sabia o que era; ele tentou apreender, mas foi apreendido, e a evidência disso é sua, identificação com Zarathustra.
Mr. Baumann: Isto acontece com os pacientes de análise?
Dr.Jung: Oh, sim, este é um perigo especial da análise, que não pode ser subestimado. Se tocamos um inconsciente que está cheio e prestes a estourar, podemos causar a mais terrível explosão - realmente a insanidade. Onde quer que encontremos traços de um inconsciente em tais condições, faz-se necessário tratar o caso com o máximo cuidado. E extremamente perigoso.
Mr.Baumann: Recordo-me que o professor Heyer mostrou uma imagem de tal explosão.
Dr. Jung: Sim, aqueles fogosos touros rompendo através de uma barreira. Ele estava tão assustado que não percebeu o fato de que haviam sinais muito positivos que mostravam que a coisa poderia ser reconstituída. Mas se conhece o perigo, um homem pode perder o sangue-frio. E uma experiência aniquiladora. Nunca tive um caso assim, felizmente (batendo na madeira). O inconsciente irrompe e nós não podemos detê-lo; é terrível, só fugindo. Tentei segurar um tal caso, que vinha sendo atendido por um inexperiente analista de divã; eu me deparei com algo assim como um abscesso que escapava, e finalmente o homem se suicidou. Não pude detê-lo. Outra vez uma jovem doutora veio a mim desesperada, pedindo se eu poderia assumir um paciente como se eu tivesse analisado o caso, de modo a liberá-la da responsabilidade para que as pessoas pensassem que ele enlouquecera sob meus cuidados. Pesamos as consequências e decidi que minhas costas eram largas o bastante para suportar, assim o colocamos num asilo para lunáticos, depois de certo tempo, e salvei a reputação daquela mulher. Ela apenas começava seu trabalho profissional e isto causaria um grande escândalo. Foi, é claro, sem muito cuidado que ela analisou o caso, pois era necessário muito conhecimento psiquiátrico para reconhecer a situação. Vejam, o analista está capacitado para carregar tal responsabilidade, ele pode dizer que o paciente já era louco quando veio, apenas não sabia disso. É um preconceito generalizado que a análise faz enlouquecer às pessoas. Mande um paciente para o Burgholzli e o leigo irá presumir que os médicos de lá o enlouqueceram - ou até que ele foi para lá com o propósito de ser enlouquecido. A insônia, então, tem sua causa no inconsciente anormalmente agitado que está excitado por novas ideias. É claro que isto não acontecerá a uma pessoa que seja obtusa às experiências de seu tempo. Tal inconsciente seria apenas suavemente agitado, e bem acalmado por muitos copos de vinho, ou qualquer outra bobagem. Porém, Nietzsche era excessivamente sensível ao espírito do tempo; percebeu muito claramente que agora estamos vivendo num tempo quando novos valores devem ser descobertos, porque os velhos estão decaindo. Pois assim que uma dúvida se torna óbvia, o símbolo se esvai. Se apenas um homem ousa confrontar a igreja, argumentar com sua autoridade, uma pessoa sensível está acabada se não pode refutar seu argumento. Ela percebe de imediato que todo o sistema ruiu, pois há um pequeno rombo na sua autoridade. Se o sistema não funciona, então Deus tornou-se vulnerável, e toda a vida saiu dele. Nietzsche sentiu isso e naturalmente, de imediato, todo o processo simbólico que havia chegado a um fim do lado de fora, principiava dentro dele. Daí que ele tivesse aquele terrivelmente tensionado e ameaçador inconsciente, que começou a desgastar a parede de separação, e irromper aqui e ali. E isto, é claro, atrapalha o sono. Então naturalmente ele olha para trás com um certo lamento pelo tempo em que podia dormir, quando,' não estava perturbado.
Certa vez discuti com um professor alguns problemas psicológicos, era um bom católico e dizia: ‘Não vejo porque preocupar-se com tais coisas. Se algo é duvidoso ou problemático, eu simplesmente pergunto ao meu bispo e ele me diz tudo sobre o assunto, e se por acaso ele o desconhecer, escreverá a Roma, onde lhe dirão o que deve pensar. Lá eles têm a autoridade. Por dois mil anos as cabeças mais inteligentes no mundo estudaram estes problemas. Então, por que devo imaginar que posso resolvê-los? Não sou um especialista.’ E assim ele tinha, estou certo, um excelente sono e uma ótima digestão; ele não é perturbado porque não há o menor furo na autoridade. Mas não foi assim com o pobre homem Nietzsche.”
C. G. JUNG - SEMINÁRIOS SOBRE O ZARATUSTRA DE NIETZSCHE
ARTISTA: EDVARD MUNCH
(Post concedido pela pág. Arte em Leitura).