19/07/2024
VÍCIO EM JOGOS
(Em 2023, os brasileiros gastaram 54 bilhões de reais em bens (apostas) esportivas e cassino online. Entenda como os jogos de azar manipulam o sistema de motivação e desejo do seu cérebro- e veja como o hábito pode evoluir para um vício)
Em 1980, o vício em jogos aparece pela primeira vez como um transtorno impulsivo na terceira edição do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), a maior referência na área. Na quinta edição, publicada em 2013, foi classificado como uma dependência. Ainda que não haja nenhum composto químico envolvido, os jogos de azar atuam no cérebro de maneira semelhante aos vícios em álcool e outras dr**as.
O DSM estima que até 0,3% da população mundial sofra com esse problema: são 24 milhões de pessoas. Vamos explicar como as apostas embaralham o nosso cérebro e podem tornar viciantes. O primeiro passo é entender uma molécula em particular: a DOPAMINA.
No fundo do seu crânio, há uma antiga parte do cérebro chamada área tegmental ventral. Ela é rica em dopamina, uma molécula mensageira produzida por só 0,0005% das células cerebrais. Quando a área tegmental é ativada, a dopamina flui para outra parte da cabeça, o núcleo accumbens. No momento em que essa mensagem química chega ao núcleo, você tem aquela sensação de "nossa, isso é interessante" típica de quem vê uma vitrine.
O tempo todo, o cérebro passa um pente-fino no ambiente e analisa recursos ao nosso redor.
Cada coisa ganha uma etiquetinha: "mais risco", "menos risco", "mais recompensa", "menos recompensa". Algumas associações são inatas: bebês já nascem gostando de doce - comidas açucaradas, afinal, são garantia de energia. Mas essas associações também podem ser aprendidas. Insista o suficiente e seu filho pode liberar dopamina diante de um rabanete.
Essa é a mecânica básica do circuito do desejo, um sistema que evolui para nos deixar motivados ao menor sinal de algo que possa garantir nossa sobrevivência e reprodução.
O cheiro de um hambúrguer na chapa. Uma vaga de emprego no LinkedIn. A mensagem do seu contatinho. Qualquer chance de que algo positivo aconteça é suficiente para elevar os níveis de dopamina no cérebro.
Se você vai sentir prazer com o que está buscando, é outra história. A dopamina gera motivação, e só. "Querer e gostar são sensações produzidas por sistemas diferentes do cérebro ", ou seja: a dopamina, muitas vezes, promete mais do que entrega. Mas isso basta para deixar você pilhado.
Seria impossível permanecer 100% do tempo nesse estado, claro - ficar alerta gasta muita energia. É por isso que o cérebro tem alguns contrapesos. Os circuitos de saciedade baixam os níveis de dopamina quando você mata a sua fome, tem um orgasmo e até quando finalmente encontra o banheiro do shopping. Outro freio para a dopamina é o neocórtex, área do cérebro ligada ao planejamento e a tomada de decisões racionais. É ele quem baliza os impulsos do circuito do desejo, direcionando esforços para o que é possível atingir. "Não se pode ter tudo", já diria o neocórtex.
Dá pra contornar essas travas, claro. A maneira mais óbvia são as dr**as, que jogam os níveis de dopamina para o teto. Elas tiram o freio da área tegmental e deixam o neurotransmissor acelerar na reta. Com o tempo, o cérebro entende que essas substâncias são a única coisa capaz de ativar nosso desejo e motivação. E faz você buscar mais e mais delas. Intaurando-se um vício.
Outro problema é que também dá para condicionar o cérebro e exagerar na dose de dopamina sem usar substância nenhuma.
COMO OS JOGOS VICIAM
Nos anos 1950 Skinner, professor de psicologia em Harvard, colocou um pombo numa caixa e o condicionou a bicar uma alavanca para conseguir comida. A cada rodada do teste Skinner mudava o número de bicadas necessárias para obter a recompensa.
Como o número mudava em intervalos regulares, o pombo logo sacava que eram necessárias uma ou dez bicadas para conseguir o rango. Skinner, então, mudou o jogo: a comida só seria liberada após uma sequência aleatória de bicadas. Aí, a cachola do pássaro entrou em curto, e ele passou a bicar cada vez mais rápido para conseguir o prêmio. Com ratos o resultado foi o mesmo.
Ações rotineiras não inflam os níveis de dopamina, porque você já conhece o resultado. A batata frita daquele quilo perto do trabalho é ótima- mas ela perdeu o brilho depois das primeiras semanas. Resultados inesperados, porém, ativam o circuito de desejo. Você precisa conhecer o novo restaurante que abriu no fim da rua. Vai que a batata de lá é melhor...
Esse é o mecanismo por trás do vício em apostas, e talvez o melhor exemplo sejam os caça-níqueis. Troque as bicadas de pombo pela alavanca da máquina. ..
Matéria extraída da Revista Super Interessante - Edição 460 - Fevereiro 2024, Editora Abril.