04/06/2025
Foi ali, sentado no canto da sala, sem expressão, que ele anunciou:
— Eu morri.
A voz saiu baixa, seca, com a estranha serenidade de quem já não espera nada do mundo. A esposa, do lado, apertou o terço entre os dedos. Não ousou corrigi-lo.
Na psiquiatria, damos nome bonito pra isso: síndrome de Cotard. Um delírio de ruína, onde a pessoa acredita ter deixado de existir, que seus órgãos apodreceram, que tudo acabou. Não é figura de linguagem, é certeza sentida.
Mas por trás daquele inferno teológico, havia um outro: o da depressão psicótica, onde até a fé, que já lhe sustentara um casamento, três filhos, e algumas confissões no banco de trás da igreja, havia sido levada embora.
— Doutor, se Deus existisse, não teria me deixado assim.
Desistir de Deus porque se sente morto. Eis um paradoxo que nem Chesterton teria escrito.
Aliás, lembrei dele. G. K. Chesterton dizia, com seu humor pontiagudo, que "quando os homens deixam de acreditar em Deus, não passam a acreditar em nada, mas sim se tornam capazes de acreditar em qualquer coisa". Qualquer coisa. Inclusive que estão mortos. Inclusive que estão no inferno. Inclusive que são irrecuperáveis.
Fiquei em silêncio. A esposa também. Era um daqueles momentos em que o melhor que se pode oferecer é não ir embora.
A frase que me veio, anos depois, não veio da teologia, mas dos cuidados paliativos (Cicely Saunders, 1918-2005):
"Você importa porque você é você, e importa até o fim da sua vida. Faremos todo o possível não apenas para ajudá-lo a morrer em paz, mas também a viver até morrer."
Ele não era um paciente paliativo. Mas talvez todos os que perderam a fé em Deus, nos outros, em si, precisem de um tipo próprio de cuidado paliativo da alma.
E ali ficamos: ele, morto. Nós dois, vivos.
E ainda assim juntos, esperando que a vida voltasse.