27/07/2020
No Dia do Pediatra, compartilho um texto do final de 2019 do professor e amigo, pediatra e psiquiatra infantil, Paulo Luis Rosa de Sousa.
CRI-ME EM DEMASIA, DEI COM OS BURROS N’ÁGUA
Cri-te excessivamente, tiveram os onagros igual destino. O críptico introito serve de alerta para adentrar 2020 com prudência, que o ano já bafeja nosso desavisado pescoço. Como dar crédito, à rédea solta, para o próprio eu? Acaso o colega perdeu de vista que o eu é um pobre diabo, espremido entre 3 senhores, eles: a realidade externa, a pressão instintual e o sá**co cavalgar do superego? Cada qual destes amos tironeando para o seu lado, nosso eu, apenas sobrevive. E sempre respondendo aos três imperativos dissonantes. Como não cansar? Assim, nas libações e nos manjares de fim de ano, cuja finalidade é acolchoar relações um tanto ácidas, melhor a prudência à moda Baltasar Gracián, em Arte de prudência, século 17.
Com igual parcimônia daremos crédito ao eu do outro – sem nunca entregar-lhe todas as fichas – o querido Outro padece do mesmo infortúnio. Como nós, ele tampouco sabe bem onde se encontra neste momento neste mundo. Mas, cuidemos, evite-se entrar em desconfiança maligna antecipada, a velha conhecida paranoia. Ao contrário, sigamos a gentil filosofia japonesa, partamos do pressuposto de que o Outro sempre tem razão. Bela maneira de fomentar amizades. Não nos preocupemos se o Outro não está com a razão, logo aí ficará claro.
Mas, não só dessas pedras há no caminho. Uma história de imigrantes italianos que foram para Buenos Aires, pode cair bem neste Natal. Quem conta é um dos filhos do velho casal, que, adulto, aprendeu a muito trabalhar e a muito juntar dinheiro. Mas, pouco desfrutava da vida, foi, porisso, analisar-se. Da infância esse homem contava que, em momento de grandes privações, não tendo o que comer, sua mãe pegava a tesoura e recortava num papel de padaria uma maçã. Em seguida, filho no colo, ela ternamente lhe dizia, escondendo a própria dor, que ele comesse, que ficaria bem satisfeito com a deliciosa maçã. Com essa ternura tamanha ele apaziguava a fome e encontrava força para buscar caminhos. E os foi criando. E foi seguindo a Antonio Machado: caminante no hay camino, se hace camino al andar. Experiências de dor e privação, se mediadas por amor aconchegante podem, com sorte, não marcar apenas a carência e constituir-se apenas em revolta. Esse homem tomou de sua mão o que ela de melhor lhe podia dar e foi sobrevivendo. Outra, no Ano Novo. Quem conta é Kalaf Epalanga, angolano de Benguela, músico, colunista da brasileira revista dos livros Quatro cinco um, número de novembro de 2019. A mãe, técnica de estatística do governo, trazia muitas folhas rasuradas do trabalho e as dava aos filhos. Munidos de lápis, eles se punham a desenhar. Na casa, os brinquedos bélicos, mais apetecidos pelos guris, estavam proibidos. “Enquanto os amigos, Natal após Natal, aumentavam seu arsenal de armas de plástico, lá em casa íamos amontoando papéis”. O mais velho se tornou (bom) artista plástico. Só digas “não” com muito carinho. E, junto, alternativas. Creia-se.