13/06/2018
CARACTERÍSTICAS CLÍNICAS DA GOTA
A etimologia do termo gota, vem do latim "gutta" = gota, refletindo uma crença antiga de que a doença era causada por um veneno que caia gota a gota dentro da articulação.
Em resumo, a Gota é uma artropatia inflamatória desencadeada pela cristalização do ácido úrico intra-articular. Ou seja, é uma doença caracterizada pela elevação de ácido úrico no sangue, o que leva a um depósito de cristais de monourato de sódio nas articulações. É esse depósito que gera os surtos de artrite aguda secundária, que tanto incomodam seus portadores.
Entre os fatores de risco para gota temos: idade (a gota aumenta sua frequência com a idade); s**o masculino; etnia negra com maior incidência de gota (talvez pela maior presença de hipertensão arterial - HA - neste grupo étnico); hiperuricemia; obesidade; dieta rica em purinas; resistência à insulina; diabetes; ingestão alcóolica (particularmente cerveja, que confere maior risco que bebidas destiladas, enquanto ingestão moderada de vinho parece não aumentar o risco de gota); medicamentos (diuréticos, particularmente tiazídicos, pirazinamida, etambutol, ciclosporina, tacrolimus, e insulina em altas doses aumentam as taxas de ácido úrico sérico -AUS -, enquanto fenofibrato, amlodipina, vitamina C, alopurinol, probenecida, benzobromarona, losartana e AAS em altas doses diminuem as taxas de AUS); substâncias tóxicas como chumbo (gota saturnínica) e doenças associadas (comorbidades), como síndrome metabólica, obesidade, HA, insuficiência renal, cálculos renais, diabetes tipo 2 e doenças cardiovasculares.
É uma doença reconhecida há séculos e hoje é entendida como a forma de artrite mais frequente em homens, acometendo 1 a 2% deles em países ocidentais. Classicamente, se apresenta em crises de mono ou oligoartrite, mas em alguns casos pode progredir para uma forma crônica de poliartrite com deformidade óssea. Além do envolvimento articular, podem existir nefrolitíase e disfunção renal. Dados epidemiológicos também sugerem sua associação com outros distúrbios metabólicos, como dislipidemia, alterações do metabolismo glicêmico, síndrome metabólica propriamente dita e, em última análise, com hipertensão arterial (HA) e doença cardiovascular, o que caracteriza a gravidade potencial dessa doença. Inquéritos populacionais recentes sugerem o aumento da prevalência de gota nas últimas décadas e, ainda que seja grande o nosso entendimento dos mecanismos patogênicos desta doença e nossa capacidade de tratá-la, os pacientes continuam sofrendo de suas conseqüências.
O típico paciente com gota é um homem de meia idade, obeso, hipertenso e por vezes diabético, que usualmente apresenta consumo aumentado de bebidas alcoólicas. Em indivíduos como esse, também se espera maior prevalência de insuficiência coronariana.
Os humanos são susceptíveis ao desenvolvimento de gota devido à falta da enzima uricase, a qual metaboliza o ácido úrico formando alantoína nos outros mamíferos. Esta deficiência enzimática da espécie humana parece ter surgido durante o período Mioceno (20 a 5 milhões de anos atrás) em que duas mutações ocorreram em hominídeos iniciais que tornaram o gene da uricase não-funcional. Como consequência, os seres humanos e grandes macacos têm uma concentração de ácido úrico maior, de aproximadamente 2 mg/dl, que outros mamíferos.
A Hiperuricemia é ocorrência comum em pacientes com doença renal crônica, assim como em pacientes com gota é alta a frequência de insuficiência renal. Porém, comprovação de relação causal entre hiperuricemia e doença renal tem sido obtida apenas em modelos experimentais como a anteriormente descrita hiperuricemia induzida em ratos. O oxonato induz hiperuricemia em ratos com consequente hipertensão glomerular, hipertrofia e fibrose renal com HA renino-dependente, arterioloesclerose, inflamação intersticial renal e termina em esclerose, e estas alterações mostram-se independentes de deposição do cristal de monourato de sódio (MUS). Embora uma nefropatia por depósito de urato no interstício renal exista e seja demonstrada na histopatologia, raramente tem consequências clínicas. Evidências recentes suportam a visão de que hiperuricemia seja um importante fator de risco para cardiopatia isquêmica e outras formas de doença cardiovascular.
A inflamação na gota (artrite gotosa) é dependente da interação entre o cristal de MUS e o polimorfonuclear neutrófilo (PMN) na articulação. Na ausência de cristalização do MUS, e/ou migração de neutrófilo para o espaço articular, a crise de gota não ocorre. Crises de gota são geralmente desencadeadas por eventos específicos, como trauma, cirurgia, doenças intercorrentes, excesso de ingestão alcoólica ou dr**as que alteram as taxas de AUS. Embora a supersaturação do espaço intersticial e articular com AUS seja necessário para o desenvolvimento da cristalização, outros fatores como temperatura local, hipóxia tecidual e PH local também devem estar presentes.
Uma manifestação característica da artrite induzida por cristal de MUS é o rápido acúmulo de polimorfonucleares neutrófilos na articulação, o que é associado com a capacidade dos cristais de MUS de induzir a produção de mediadores inflamatórios entre os quais se incluem interleucina-1 (IL-1), interleucina-6 (IL-6), fator de necrose tumoral-a (TNF-a) e quimiotáticos como interleucina-8 (IL- 8 ou CXCL8) e oncogene relacionado ao crescimento a (CXCL1). Estudos recentes sugerem que IL-1 possa ter um papel central na inflamação da gota por meio de estímulo de fator de diferenciação mielóide 88 (MyD88) que ativa o fator de transcrição NFkB; e ativação de NALP3 inflamassomo, que ativa a enzima caspase que faz a clivagem de pré-IL-1 para IL-1 com amplif**ação da mediação inflamatória. A inflamação induzida por MUS é reduzida drasticamente em camundongos que não tenham receptor de IL-1 (IL1-R), o que faz com que IL-1 seja considerada essencial para o desenvolvimento e amplif**ação da inflamação induzida por MUS in vivo. IL-1 induziria a expressão de moléculas de adesão como selectinas e fatores quimiotáticos como IL-8, que são essenciais para a migração de PMN ao local da inflamação.
Mesmo na ausência de tratamento, a resposta inflamatória na crise de gota dura de sete a dez dias, sendo caracteristicamente autolimitada. Além disso, cristais de MUS podem ser visualizados na articulação assintomática de pacientes com gota. Esses fatos implicam na existência de fatores que mantenham um estado de não-inflamação na presença de MUS e levem ao término ou uma autolimitação da inflamação vigente na crise de gota. Injeção de cristais de MUS na pele humana leva a uma reação eritematosa, com seu máximo em 24 horas e a seguir desaparece de forma espontânea. O mesmo acontece na pele de porco, e este tem sido utilizado como modelo experimental.
Neste modelo, a reação inflamatória se inicia com a expressão de selectina, que aumenta no período de duas a seis horas em paralelo com o acúmulo de PMN, monócitos e exsudação de albumina. A seguir, o acúmulo de PMN decresce embora persista a expressão de selectina. Após oito horas da injeção de MUS, a selectina diminui sua expressão ainda que eritema e induração persistam.Ao final as manifestações de inflamação desaparecem apesar da persistência do cristal de MUS. Esses fatos sugerem que a supressão da resposta inflamatória inicia com a inibição do recrutamento celular de leucócitos pela auto-regulação da ativação endotelial, provavelmente por meio de processos endógenos de inativação do fator de transcrição gênica NFkB e outros fatores de transcrição mediados por TNFa e IL-1. Entre esses processos de auto-regulação da resposta inflamatória na gota estão as alterações de proteínas que recobrem o cristal de MUS, como apolipoproteínas B e E, o que inibe a liberação de grânulos pelos PMN.
Participam também da auto-regulação inflamatória as melanocortinas (hormônio adrenocorticotrópico (ACTH) e hormônio estimulante de melanócitos α (α-MSH)), e o receptor ativado de proliferação de peroxissoma (PPAR-γ), que inibem a transcrição de genes pró-inflamatórios. Os cristais de MUS presentes em articulações assintomáticas de pacientes com hiperuricemia geralmente estão presentes dentro de macrófagos e raramente em neutrófilos, o que sugere que macrófagos interagem com cristais de MUS sem causar inflamação. Dessa forma, parece que macrófagos possam ter um papel na depuração de cristais de MUS assim que formados e impedir a crise de gota. Do mesmo modo, por impedirem a inflamação permitem o acúmulo dos cristais e formação dos tofos, depósitos de cristais de MUS encontrados em pacientes com hiperuricemia de longa duração. Posteriores análises desses componentes da auto-regulação da resposta inflamatória na gota poderão identif**ar futuros procedimentos terapêuticos na inflamação.
As decisões terapêuticas na gota devem ser tomadas em relação às seguintes áreas: tratamento da crise de gota, tratamento da crise de gota refratária, prevenção de crises de gota, tratamento da hiperuricemia e tratamento das doenças associadas ou comorbidades.
A droga de escolha para o tratamento da crise ou artrite aguda são os anti-inflamatórios não-hormonais (AINH) utilizados em suas doses máximas por curto período de tempo, o que minimiza seus efeitos colaterais. Muitos ensaios clínico-terapêuticos sobre a eficácia de AINH foram realizados na crise de gota, porém, nenhum AINH em particular se mostrou superior em sua eficácia. AINH estão contra-indicados, ainda que por curto prazo, em pacientes com insuficiência cardíaca, insuficiência renal, história prévia de úlcera péptica, perfuração ou hemorragia digestiva, devendo ser utilizado com cuidado em pacientes fragilizados, idosos e com múltiplas doenças. No momento, é aconselhável evitar o uso de AINH do grupo dos inibidores específicos de ciclooxigenase-2 (coxibs) em pacientes com crise de gota e doença cardiovascular e/ou cerebrovascular estabelecida. Associado ao AINH em doses plenas, um programa de repouso físico e psíquico, com afastamento do trabalho é recomendável.
Os pacientes que não respondem ao tratamento acima descrito devem ser reavaliados quanto à validade do diagnóstico de gota. Uma vez revalidado o diagnóstico, o uso de corticoesteróide sistêmico pode ser indicado, principalmente naqueles com gota poliarticular.
A meta no tratamento da hiperuricemia é alcançar uma taxa de AUS menor ou igual a 5 mg/dl. Nesses níveis de AUS, a possibilidade de crise de gota é praticamente nula. Para a diminuição do “pool” de urato plasmático e tecidual os seguintes procedimentos têm sido realizados: modif**ações dietéticas, dr**as uricosúricas, dr**as uricostáticas, combinaçãodeuricosúricoeuricostáticoedr**as uricolíticas.
É importante a modif**ação de estilo de vida, particularmente dietético, em pacientes com gota. Recomendações incluem redução de peso, restrição alcoólica (especialmente cerveja pelo seu alto conteúdo de purina, 1g em cada 100g da bebida) e consumo limitado de alimentos ricos em purina, como molhos de carne, miúdos, anchova e sardinha.
Entre as dr**as uricosúricas, que aumentam a excreção urinária de ácido úrico, a mais ef**az é a benzobromarona, na dose oral de 50 a 100 mg/dia. Na prática clínica tem mostrado ser a única droga capaz de alcançar a meta no tratamento de hiperuricemia em curto e médio prazos. Deve-se ter cuidado em pacientes com história de litíase renal, e se utilizada deve acompanhar aumento da ingesta hídrica e da diurese. Está contra-indicada em pacientes com insuficiência renal e/ou hepatopatia, uma vez que pode ser hepatotóxica.
Alopurinol, uma droga uricostática, cuja ação se faz pela inibição da enzima xantino-oxidase que age em hipoxantina e xantina transformando-as em ácido úrico, foi uma das primeiras dr**as no controle da hiperuricemia. Estudo comparando alopurinol (300 mg/dia) e benzobromarona (100 mg/dia) mostrou que o AUS diminuiu para 6 mg/dl em todos os pacientes em uso de benzobromarona e em 53 dos pacientes em uso de alopurinol. Aproximadamente dois dos pacientes tomando alopurinol desenvolvem eritema alérgico que pode progredir, em pequeno porcentual de pacientes, para uma dermatite exfoliativa grave.
A combinação de alopurinol e benzobromarona em pacientes com gota crônica tofácea extensa tem-se mostrado ef**az na eliminação dos tofos.
Os agentes uricolíticos são aqueles que exercem a função da uricase, enzima em que a espécie humana é deficiente, como já anteriormente descrito. A infusão de uricase purif**ada de Aspergillus fumigatus (uricozima) ou da enzima recombinante expressa em Streptococcus mitis (rasburicase) tem sido utilizada de maneira ef**az para a supressão da síndrome de lise tumoral em pacientes tratados
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Referência
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