21/04/2024
O dengado f**a dengoso?
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Mui coincidentemente, enquanto eu elaborava esta postagem, peguei dengue. Depois de uma semana, baqueado, consegui voltar a escrever. Nesse ínterim, fiquei matutando se ‘dengo’ e ‘dengue’ – tão parecidos, só que um é do céu e o outro, do inferno – teriam algum vínculo etimológico.
Eu havia recebido de vários leitores uma publicação disseminada no Instagram e no Xuíter na qual se explica a etimologia da palavra ‘dengo’. Lá dizia o seguinte (sic): “É muito bonita a origem da palavra dengo. é da língua africana chamada quicongo e signif**a ‘pedido de aconchego no outro em meio ao duro cotidiano’.”
Poético, não? Mas o cheiro de pseudagem foi grande. Mais do que nunca, é necessária a nossa seção ‘NC verif**a: fato ou feique?’.
O primeiro ponto a se questionar é: existem palavras com “origem bonita”? Acho dubitável... Em Etimologia, não temos origem bonita ou feia. As coisas simplesmente existem e não há anda que qualif**ar. Ainda assim, na minha opinião, se for para acharmos alguma origem etimológica bonita, seria pela graça da evolução do vocábulo e não por algum signif**ado anterior, talvez mais agradável que o atual.
Para mim, palavras com origem bonita poderiam ser aquelas cuja etimologia, sem uma análise mais profunda, sequer cogitaríamos. É o caso de ‘companhia’, que vem do latim ‘com-’ (com) e ‘pannis’ (pão) – é a partilha do pão; de ‘abacaxi’, que em tupi era ‘iwakati’, a ‘fruta que exala cheiro’; ‘paquerar’ vem de ‘caçar pacas’; e ‘morcego’ vem do latim ‘mus coecus’ (rato cego).
‘Catedral’ tem etimologia bonita, pois, ao constatarmos que o termo vem do grego antigo ‘káthedra’ (cadeira, assento), faz sentido uma igreja assim ser chamada, pois nela há o trono episcopal.
Enfim, esse negócio de “origem bonita” é, sim, bastante questionável, mas, na minha opinião, se há o belo na Etimologia, ele está na resolução do enigma, na percurso desenhado, na evolução das palavras – não no signif**ado primeiro.
Segunda pergunta a ser feita é: “língua quicongo”? Você já tinha ouvido falar nela? É que muitos autores simplif**am como “língua africana” ou “origem africana” uma gama imensa de línguas da África. É por isso que quando alguém resolve mencionar especif**amente uma ou outra, pode soar estranho – mas, claro, é sempre bom que se diga.
Assim como o quimbundo e o umbundo, o quicongo é uma língua do grupo banto, que, chegada ao Brasil durante a escravatura, contribuiu muito ao vocabulário brasileiro. (Outra língua muito presente por aqui foi o iorubá, da Nigéria.) O quicongo é falado na Angola e na República Democrática do Congo. Dele temos palavras como ‘fubá’ (de ‘mfuba’: fécula), ‘muvuca’ (de ‘mvúka’: febre intermitente) e ‘maculelê’ (de ‘makelele’: algazarra, confusão). Tá, mas e ‘dengo’, também viria daí?
Peço ajuda aos dicionários. Meu amigo Houaiss diz que ‘dengo’ vem do espanhol ‘dengue’; Michaelis concorda; Aulete diz o mesmo; Priberam, lá de Portugal, assinou embaixo.
“Uai, mas e não poderia essa ‘dengue’ aí ter vindo lá do quicongo?”, perguntar-me-ia você (ó, uma mesóclise!). Então, quem é a autoridade agora é a ‘Real Academia Española’, que no seu ‘Diccionario histórico de la lengua española’ (2018), nos explica a dupla origem de ‘dengue’.
Se for a ‘dengue’ doença, a desgramada que me incapacitou por mais de uma semana, o caminho etimológico é outro. O primeiro registro da enfermidade com tal nome é de 1828, num jornal de Madri, em que se noticia uma epidemia em Havana, Cuba. Nesse caso, a origem é doutra língua africana banta com grande influência nas Antilhas, o suaíli (de origem no Norte de Moçambique, Quênia, República Democrática do Congo, Tanzânia e Uganda). ‘Dengue’ vem do suaíli ‘denga’, que é uma redução de ‘ki denga pepo’ (doença causada por mau espírito) 🙀.
Se for a ‘dengue’ sinônimo de ‘manha’, ‘meiguice’, ‘sensualidade’ ou ‘birra’, aí o primeiro registro é de 1715, quando signif**ava, em espanhol, ‘demonstração exagerada de delicadeza, melindre’. A origem é onomatopaica, ou seja, é a tentativa de se imitar um som (qual, no caso, eu não sei).
Sinto muito desiludir quem se afeiçoou àquela explicação água com açúcar de ‘dengo’, mas a verdadeira origem é uma onomatopeia 🤷♂️. Continua bonita a etimologia? Para mim, sim. Aliás, com as vestes da verdade, a etimologia sempre f**a linda, maravilhosa, atraente, encantadora... dengosa que só.
⁂ Gostou? Então leia mais um tantão de histórias bacanas nos livros ‘100 etimologias para curtir e compartilhar’ e ‘50 pseudoetimologias para deixar de compartilhar’. Estão disponíveis no linque do primeiro comentário. 😉
📚 Referências: ‘Dengue prevention and 35 years of vector control in Singapore’, por Eng-Eong Ooi, Kee-Tai Goh e Duane J. Gubler, na revista ‘Emerging infectious diseases’ (jun. 2006); e ‘Conheça as palavras africanas que formam nossa cultura’, na revista ‘Carta capital’ (nov. 2017).
🖼️ Figura: printe dum perfil do ‘X’ (mar. 2024).
🗣️ Sugestões: Fernando Bravim, Gustavo Marreiros, Jana Kirschner, Nathália Mendonça e Tarik.