27/07/2025
Quando o outro já não está — e ainda assim você insiste
Sobre o descompasso entre quem se oferece e quem já decidiu não se implicar
Em certas relações, o desencontro não acontece no fim, mas no início. Logo nos primeiros gestos, nas primeiras respostas. Há quem chegue disposto a construir algo — mesmo que de modo gradual, mesmo que sem nome. O vínculo ainda é nascente, mas o afeto já se insinua: na escuta atenta, na vontade de repetir a presença, na tentativa de abrir espaço interno para um outro. Do lado oposto, porém, pode vir um corte seco, indiferente, camuflado de liberdade: “se quiser sair com outras pessoas, tudo bem.”
Essa afirmação, muitas vezes lida como maturidade emocional, pode operar, na verdade, como uma forma precoce de desimplicação. Um modo de colocar o outro no campo da indiferenciação — nem objeto, nem parceiro, nem ameaça — apenas alguém com quem se partilha circunstancialmente o tempo. O sujeito que enuncia tal frase se posiciona fora da cena desejante. Ele participa do jogo, mas se recusa a ser afetado pelas regras. Não há investimento, só presença performativa.
A psicanálise nos oferece um caminho para entender esse tipo de impasse. Quando há afeto, há necessariamente risco. Estar disponível a alguém é permitir que a estrutura psíquica se mova, mesmo que minimamente. É deixar-se tocar por algo externo que reativa o interno: lembranças, expectativas, medos, fantasmas. Todo início carrega uma repetição — não há relação que não convoque cenas anteriores. E é justamente por isso que muitos recuam. Manter-se à margem, evitar a construção de laço, é muitas vezes uma forma de evitar a reatualização da falta.
Por outro lado, aquele que manifesta desejo de continuidade, que demonstra incômodo diante da frieza, costuma ser acusado de “sentir demais”, de “esperar algo que não foi prometido”. Mas o que está em jogo raramente é promessa: é presença simbólica. Não se trata de esperar garantias, mas de identificar sinais de disponibilidade. E quando esses sinais não vêm, quando o outro oferece apenas uma espécie de neutralidade emocional que, no fundo, é ausência de desejo, instala-se o desequilíbrio.
Estar disponível afetivamente não é o mesmo que se iludir. É justamente o contrário: é sustentar o olhar aberto mesmo diante da possibilidade de perda. É suportar o tempo do vínculo sem precisar anestesiá-lo com distrações, jogos ou terceiras presenças. E isso exige estrutura. Recuar pode ser sintoma de defesa, mas se aproximar é, muitas vezes, sinal de coragem psíquica.
Há uma diferença radical entre quem evita envolvimento por temor e quem se abre para a experiência com lucidez. Quando uma relação se forma entre esses dois polos — um que se oferece e outro que já se antecipa como ausente —, o vínculo se organiza em desequilíbrio desde o início. Não se trata de intensidade demais, mas de falta de reciprocidade mínima.
O desencontro, então, não é efeito do tempo ou das circunstâncias. Ele já estava presente na forma como cada sujeito se posicionou diante da possibilidade de ser afetado.
E por mais que o discurso do desapego pareça moderno, leve ou maduro, é preciso dizer: há maturidade também em sentir. Há ética no gesto de desejar. Há consistência na escolha de sustentar o risco de um laço.
Nem toda ausência é respeito.
Nem todo silêncio é liberdade.
E nem todo “tá de boa” é sinônimo de saúde.
Às vezes, é só defesa.
Às vezes, é só alguém que já decidiu não estar — e disse isso da forma mais elegante que conseguiu.
Reconhecer isso não anula o afeto, mas reorganiza a direção do investimento.
Quando a presença do outro já é ausência em ato, permanecer é consentir com o vazio.
Nessa hora, o gesto mais lúcido não é insistir —
é recuar antes que a espera se transforme em ferida.
É sair não por fraqueza, mas porque nada foi oferecido que justificasse permanecer.
Não há vínculo onde só um se implica.
Não há reciprocidade onde só um sustenta desejo.
E insistir onde já se anunciou a ausência é fabricar, pouco a pouco, a própria dor.
Às vezes, o cuidado consigo começa no corte precoce.
Antes que a carência do outro se torne um espelho da sua.
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Sheila Schildt Psicóloga, Psicanalista, Supervisora Clínica, Professora Coordenadora no IPC RS, Especialista em Psicologia Infantil e TEA (Transtorno do Espectro Autista), aplicadora ABA, com experiência em Avaliação Psicológica. CRP 07/18674.
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