28/01/2022
Kierkegaard utilizou o método da comunicação indireta para ajudar a quem poderia se lançar no desafio existencial de tornar-se si mesmo. Por muitas vezes, a comunicação objetiva e direta, além de minar a subjetividade, teria o efeito contrário do esperado.
Para isso, preocupou-se muito mais com o modo e o meio que as coisas seriam ditas do que o objeto em si ou sínteses.
Considerava que o estético havia triunfado, por isso utilizou uma forma de comunicação estética para convidar a uma reflexão mais profunda. Astutamente, através de novelas literárias e utilizando recursos sofisticados como a ironia, paradoxos, ambivalências e pseudonímia, incitou seus leitores questionamentos, novas ideias e reflexões mais próprias.
“Através de seus textos imaginativos, o escritor expressou o seu intenso compromisso com a interioridade, reforçando a sentença de que o paradoxo e o absurdo da vida podem ser mais perceptíveis na situação fundamental humana, interpretada no mundo de papel.” (LEÃO, 2010)
Em seus textos, escritos com marca poética acentuada, não trazia introdução ou conclusão e por muitas vezes poderiam parecer confusos para o leitor. Prezava pelos elementos mais particulares e inassimiláveis da existência humana que eram vivenciados “ao mesmo tempo”. Tentava abordar o tema da interioridade humana e dos significados da existência de forma sedutora.
A partir dos “experimentos existenciais” realizados na construção da narrativa literária, eram mostradas indiretamente aos leitores algumas características do existir de modo subjetivo, apaixonado ou patético, no sentido de imbuído de pathos. (ROSSATTI, 2011)
Kierkegaard sabia que não poderia comunicar ao outro o que significava a existência, pois seria como existir por ele. A partir das personalidades poéticas que carregam em si os problemas existenciais próprios dos humanos, o leitor é impulsionado a indagar sua própria existência. (LEÃO, 2010)
Assim, Kierkegaard não indica caminhos certeiros ou estruturas sistemáticas definidas ao leitor, pois cabe a esse atribuir os sentidos, subjetivamente, expressar os movimentos de sua própria existência de forma “artística”, assimilando o universal e o particular. (ROSSATTI, 2011)
Kierkegaard foi um ironista por excelência, desenvolveu uma abordagem aberta e contraditória da existência. A ironia socrática tinha papel crucial para a desconstrução de seus contemporâneos, lançando-os na insegurança da dúvida, consistindo esta em três momentos: perguntar, contradizer e refutar.
Desse modo, a ironia tem como objeto o próprio refletir para não apenas repetir ou reproduzir pensamentos ou modos de ser, mas desfazer essas ilusões e os conhecimentos advindos de preconceitos e impessoalidades.
Outro artifício de disfarce irônico utilizado em suas obras foi a pseudonímia, a simulação e dissimulação autoral.
Os pseudônimos foram utilizados como estratégia da comunicação indireta diante da necessidade de seriar diversos tipos de individualidade que diferem entre si e não fixam ou determinam uma forma de sistema. (LEÃO, 2010)
“[...] não há nos livros de pseudônimos uma simples palavra que seja minha. Eu não tenho nenhuma opinião sobre sua significação exceto enquanto uma terceira pessoa, nenhum conhecimento sobre eles exceto enquanto um leitor, nem a mais remota relação privada com eles, pois é impossível ter uma relação com uma imagem duplamente refletida. Da minha parte, uma única palavra pronunciada por mim ou no meu próprio nome seria um presunçoso esquecimento de mim mesmo, esquecimento que, do ponto de visa dialético, torna-me, essencialmente, responsável pelo aniquilamento dos pseudônimos através desta única palavra.” (KIERKEGAARD, 1992, p. 166 citado por LEÃO, 2010)
Ao ansiar por maior liberdade de seguir por si mesmo, o homem vive na ambiguidade, no sentimento que antecede toda escolha, toda possibilidade. Kierkegaard jogou com isso, com os equívocos de comunicação, duplicidade de sentidos, gerando efeitos de humor e permitindo mais de uma interpretação. Essa anfibologia é um jogo dialético capaz de incluir novas reflexões no imaginário, alternar e assumir novas posições interpretativas e questionar escolhas. (LEÃO, 2010)
Comunicar a existência dessa forma, colocando o receptor em papel ativo, considerando sua subjetividade, valoriza e potencializa o mesmo na construção dos significados, pois incita-o a voltar-se para si mesmo, não só compreendendo conceitos gerais intelectualmente, mas também os aplicando em sua vida, realizar o que Kierkegaard nomeia de “dupla reflexão”, viver a tarefa existencial, torná-la efetiva em sua própria existência. (ROSS, 2021)
Em face a tantos elementos que tentam determinar o si mesmo, da impossibilidade em dissipar diretamente uma ilusão e realizar uma passagem direta para as questões existenciais, Kierkegaard utilizou a comunicação indireta e ironia num método que adentrava e partia do estético como estratégia para auxiliar na aventura que é tornar-se si mesmo.
Referências:
LEÃO, Jacqueline Oliveira. A pseudonímia como artifício irônico em Kierkegaard. Revista Pandora Brasil – Número 23, Outubro de 2010.
ROSS, Jonas. 10 Lições sobre Kierkegaard – Petrópolis, RJ: Vozes, 2021.
ROSSATTI, Gabriel Guedes. Como narrar o que se passa na interioridade? Ou kierkegaard e o problema da comunicação indireta. Revista Filosofia Capital Vol. 6, (2011).