
20/07/2025
Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada
A leitura de Quarto de Despejo é um mergulho profundo na dureza da vida na favela. Carolina Maria de Jesus narra sua realidade com uma escrita crua, sensível e extremamente lúcida. Olhando pela lente da psicanálise, seu diário aparece como um testemunho de alguém atravessado pela miséria — mas que não perde o desejo, a linguagem, nem a pulsão de vida.
Carolina escreve para existir. Sua escrita é uma forma de sublimação: transformar angústia, dor, solidão e fome em palavra. O diário vira seu espaço de elaboração psíquica, quase como um “consultório íntimo”, onde ela pode dar nome àquilo que o social frequentemente tenta calar.
A fome, por exemplo, vai muito além do corpo. É uma marca psíquica, simbólica, que carrega também o desejo de reconhecimento, de pertencimento, de ter um lugar no mundo. É impossível não lembrar aqui da ideia freudiana de que somos marcados pela falta — e no caso de Carolina, essa falta é ampliada por um sistema que a exclui, a silencia, a marginaliza.
Sua escrita também é uma forma potente de denúncia: do racismo, da exclusão, do patriarcado, da desumanização. Ela escancara o quanto o sujeito Carolina é tensionado por um laço social que a rejeita, como se fosse mesmo um “quarto de despejo”, o lugar onde a sociedade joga aquilo que não quer ver. A favela aparece como o real que retorna — aquilo que é recalcado, mas insiste em existir.
Pensando na saúde mental, é impossível ignorar o impacto das condições materiais de vida sobre seu estado emocional. O medo, a solidão, o abandono, a humilhação — tudo isso coloca o psiquismo em constante desafio. Ainda assim, há em Carolina uma força de desejo, uma pulsão de vida que insiste, mesmo entre os escombros.
E o que mais me toca é a figura da mãe que escreve para manter os filhos vivos, para deixar um legado, para não desaparecer. Por trás das palavras, ouço o eco de uma melancolia social: a saudade de um lugar que nunca existiu, o luto por uma dignidade que sempre lhe foi negada. Sua escrita é, antes de tudo, um ato político e humano — ela rompe o silêncio e afirma sua existência como mulher, preta, pobre, escritora e sujeita de sua própria história.