09/02/2024
Nós médicos, ao longo do tempo, com certeza perdemos muitas habilidades, principalmente sensoriais, mas fomos obrigados a adquirir na marra outras, só que essas não ensinam nas faculdades.
Quando era moleque, e tinha qualquer problema de saúde, que a dra. minha mãe não “soubesse” como tratar, ela nos levava no Dr. Edwirges ou no Dr. Arlindo, ambos médicos generalistas da Penha, bairro da zona leste de São Paulo. Ali ele nos examinava dos pés à cabeça, prescrevia Bactrim e mandava embora, qualquer coisa ligar para ele em casa. E assim cresci, nunca tive nada mais sério. Claro que a sensibilidade e especificidade desse atendimento eram baixos, mas era o que tinha, ouvido, estetoscópio, abaixador de língua e experiência.
De lá para cá, muito mudou. Muita tecnologia se desenvolveu que propiciou uma acurácia incomparável com aquelas épocas. Mas aí os médicos passaram a agir preventivamente, precisam provar o que diziam, se tem alguma coisa, que prove com um exame, se não tem a mesma coisa, a mesma coisa, cadê o exame provando? Deixou-se de buscar sensibilidade e especificidade, para entrar no mundo do valor preditivo. Isso é o que importa agora.
Aí a brincadeira ficou cara. Ninguém consegue pagar do próprio bolso. Entraram em jogo as medicinas de grupo e seguradoras. Cada um pagando um pouco por mês, cobriria os gastos daqueles que precisassem usar o sistema de saúde naquele período. Por um tempo isso funcionou. Mas a tecnologia continuou se desenvolvendo, a indústria farmacêutica laçando com frequência moléculas modif**adas que prometem ser melhores que as anteriores, comprovadas muitas vezes por estudos bem fracos, mas o lobby dessa indústria é grande, quem resiste? Essa onda de desenvolvimento atingiu em certa proporção também a saúde pública, até quando o sistema único de saúde vai sustentar tantas incorporações milionárias? Lembrem-se, quem paga a conta dessa brincadeira somos nós.
Esse sistema aguçou o espírito de autossobrevivência. Os grandes hospitais precisam garantir suas receitas, e os prontos-socorros, que na época do Dr. Edwirges serviam apenas para atender traumas, e que hoje dão conta da falta de suporte da figura central de um médico assistente de família, estão cheios de médicos malformados, treinados a pedir exames e produzir diagnósticos. Atendem uma simples infecção de urina, que qualquer leigo sabe diagnosticar e até tratar, e quando vemos ver, o paciente já fez dezenas de exames laboratoriais, tomografia de tórax e abdômen, ultrassom de rins e vias urinárias, e tudo mais que o protocolo escrito pela diretoria do hospital mandar. E não para por aí, talvez esse paciente acabe internado, porque o PCR e mais algum exame esteja alto, indicando risco de sepse. E nesse caso, lógico, para melhor controle do doente, ele vai para uma semi-intensiva. Assim, esse paciente, que poderia tranquilamente assistir o jornal da noite no seu sofá tomando um simples antibiótico, se vê internado cheio de monitores e cateteres. Tristemente ainda, quem f**a com fama de herói para esse doente e sua família é o médico do pronto-socorro e hospital.
Tenho visto isso aos montes, até com graves iatrogenias sendo praticadas de forma inconsciente por médicos absorvidos por esse sistema, que são convencidos que estão fazendo o melhor para nossos pacientes. Precisamos abrir os olhos, o sistema de saúde não aguenta, a sociedade não suportará ser atendida por tange gente malformada. Vamos nos guiar pelo velho e bom caminho do meio. Desconfiar dos excessos e brigar contra as escassezes.