25/07/2025
𝐎 𝐫𝐞𝐟𝐥𝐞𝐱𝐨 𝐝𝐚 𝐢𝐦𝐢𝐭𝐚𝐜̧𝐚̃𝐨 𝐞 𝐨 𝐫𝐞𝐟𝐥𝐞𝐱𝐨 𝐝𝐨 𝐬𝐮𝐬𝐭𝐨: 𝐨𝐧𝐝𝐞 𝐚 𝐩𝐨𝐫𝐜𝐚 𝐭𝐨𝐫𝐜𝐞 𝐨 𝐫𝐚𝐛𝐨.
Regina Favre
2023
No reflexo de imitação, o corpo contrai e expande instantaneamente face a qualquer objeto, situação, qualidade, qualquer coisa, como efeito da atenção, imitando-o para saber em si mesmo o que é aquilo. Isso é a percepção do não-self e ao mesmo tempo uma espécie de fagocitação de formas. Através da repetição dos padrões motores dessa forma, ela pode vir se tornar nossa.
O reflexo do susto, por sua vez, é uma resposta organísmica para lidar com situações de emergência ou de ameaça ou de desafio de fora ou de dentro do organismo. É um processo complexo que começa com respostas reflexas simples a intensidades excessivas e envolve uma predisposição em direção a formas mais complexas dependendo do tempo, da fonte, da duração e da intensidade do desconhecido.
Esta resposta destina-se a ser temporária. Quando o perigo passa, o organismo volta ao normal. Entretanto, esta mesma resposta pode se tornar um estado habitual de tal modo que sua organização permanece à medida que nos movemos de um evento para o outro. Torna-se um padrão somático contínuo.
Padrões somáticos, sejam disfuncionais ou funcionais, são processos de autopercepção, um modo de sentir, agir, estar e conhecer o mundo. Eles afetam todos os tecidos, músculos, órgãos e células, bem como pensamentos e sentimentos. Eles são mais do que mecânicos, eles são uma forma de inteligência, um contínuo de autorregulação.
Diz Keleman, em 2007, “Os padrões são um fenômeno das camadas e tubos da arquitetura somática e afetam o organismo como um todo. Eles são intrínsecos e envolvem estados musculares da ponta dos pés ao alto da cabeça. Músculos e órgãos não estão apenas contraídos ou afrouxados, eles estão organizados em uma configuração comportamental que é sempre conectiva com os ambientes e corpos.”
𝟏. 𝐎 𝐞𝐦𝐩𝐨𝐛𝐫𝐞𝐜𝐢𝐦𝐞𝐧𝐭𝐨 𝐝𝐚 𝐛𝐢𝐨𝐝𝐢𝐯𝐞𝐫𝐬𝐢𝐝𝐚𝐝𝐞 𝐬𝐮𝐛𝐣𝐞𝐭𝐢𝐯𝐚: 𝐧𝐨𝐬𝐬𝐨 𝐚𝐥𝐯𝐨.
As visões formativas de Keleman nos apresentam um modelo do soma que, acopladas a uma visão ecosófica, pode ser visto como um lugar, um lugar vivo, uma arquitetura evolutiva viva nos sistemas da biosfera e nos redes humanas.
Mas esse organismo, o nosso, tem a possibilidade muito mais rica do que qualquer outro organismo vivo, de contínua autoconstrução com elementos moleculares daquilo que é trocado com os ambientes, sejam eles elementos físicos, sentidos, comportamentos ou imagens.
Hoje, os reflexos do susto e da imitação se espalham globalmente, de uma maneira nunca vista, como um vírus, através das redes de comunicação, sobretudo de imagens, sejam notícias ou modelos de comportamento, que agora nos envolvem a todos.
Cada camada do soma requer tempo formativo e ambientes confiáveis para formar a si mesmo no devir e operar sobre a criação de diferenciações que nos conectam funcionalmente com os ambientes da rede global, próximos ou distantes, dos quais hoje somos parte, tanto localmente como de uma maneira geral. É justamente sobre esses tempos formativos e ambientes confiáveis que as estratégias capitalísticas incidem com seus efeitos malignos.
As formas embriogenéticas, as formas constitucionais, as formas do desenvolvimento, as formas de autoproteção, de ataque, de emoções, matrizes de gestos e ações, tudo emerge da profundidade do oceano formativo em cada organismo e dispara no momento certo a partir da sabedoria ancestral do soma. Essas formas, entretanto, já emergem num mundo global, pós-moderno, capitalista, regulado pelo interjogo de poderes e valores que as capturam e canalizam para dentro de redes de sentido imediatamente, moldando-as e modelando-as somaticamente, não apenas de um modo incorporal.
Cada nova forma biológica que emerge a cada momento, na continuidade de cada corpo humano é imediatamente ameaçada por forças de exclusão e imediatamente encontra à sua disposição formas e modos de funcionamento pré-fabricados, testados pela seleção do mercado, manipulados por pesquisas de opinião e suportados por tecnologias criadas pelas mentes mais brilhantes.
Essas formas moldantes todas estão em volta de nós, preenchendo todo o espaço da nossa percepção, oferecendo-se para produzir em nós a ilusão de inclusão neste mundo. São formas que não apenas modelam nossa forma somática e existencial, mas nosso desejo de futuro e nossas conexões.
Elas são as “fast forms”, como o “fast food”, enganadoras para nossa fome de viver, elementos para serem usados na construção de novos modos de existir, que somos forçados a agregar diante da desagregação súbita e contínua de modos de ser e de existir, efeito de fragmentação do reflexo do susto sobre nós como resposta biológica à velocidade excessiva e à ameaça vertiginosa de exclusão gerada pelo capitalismo global. O ambiente global como vemos não oferece tempos formativos nem ambientes confiáveis, atacando continuamente a agregação e conectividade nos corpos.
Essas ameaças são intensificadas por imagens continuamente bombardeadas pela indústria de comunicação de massa, imagens de inclusão, prestígio, segurança e felicidade lado a lado com imagens de exclusão, privação, violência, perda de propriedade e existência social, para não mencionar a perda da vida, que constantemente nos aterroriza. Por um lado o reflexo do susto, por outro o reflexo da imitação, são continuamente disparados. O tempo instantâneo do mundo global não nos dá tempo de formar vidas que sejam resultantes do processamento na usina organísmica de uma vida em particular, e nos catapulta em direção às soluções fáceis oferecidas pelas “fast forms”. Elas todas estão à venda. São objetos e serviços de todo tipo que, na verdade, são bordas subjetivas, modos de morar, vestir, relacionar, pensar, imaginar, amar, desejar, funcionar, produzir, gerar histórias de vida. Elas nos configuram e nos conectam a processos maiores. Estes modelos de existência têm a característica de serem facilmente assimiláveis. Elas, aparentemente nos poupam esforço, tempo e angústia de compor nossos próprios menus de ser e viver no mundo a partir da digestão necessária dos acontecimentos. E vêm junto com uma operação poderosa de marketing a qual nos faz acreditar que consumi-las e nos identificar com elas é essencial para configurar nosso território que continuamente se desmancha na velocidade da informação e dos novos acontecimentos. Esse é, aparentemente, o único modo de pertencer à rede planetária e evitar o risco físico ou social de morte, dada à desconexão com os processos de continuidade da vida.
Sob o terror, é ativado o reflexo de imitação.
O alto nível de atenção mobilizado pelas técnicas de comunicação alimenta o nosso potencial de identificação com as fast forms, as quais, por sua vez, alimentam o funcionamento dessa máquina modeladora de sentidos nos corpos, o que se tornou uma das principais forças na circulação de valores do capitalismo contemporâneo.
Essas “fast forms”, paradoxalmente, têm a característica de confirmar a nossa falta de auto-referência e o nosso desamparo, nos tornando dependentes do seu consumo compulsivo sempre em busca do alívio anunciado em relação à nossa constante angústia de existir.
A menos que nós possamos reverter a situação.
𝟐. 𝐎 𝐩𝐞𝐧𝐬𝐚𝐦𝐞𝐧𝐭𝐨 𝐞 𝐨 𝐦𝐞́𝐭𝐨𝐝𝐨 𝐟𝐨𝐫𝐦𝐚𝐭𝐢𝐯𝐨 𝐚 𝐬𝐞𝐫𝐯𝐢𝐜̧𝐨 𝐝𝐞 𝐮𝐦𝐚 𝐦𝐢𝐜𝐫𝐨𝐩𝐨𝐥𝐢́𝐭𝐢𝐜𝐚
Mas para produzir uma operação realmente individuante, necessitamos rever nossos conceitos sobre corpo, de como o processo de produção de corpo acontece, contemplar através de que interjogo de forças biológicas e sociais um corpo modela o seu próprio processo formativo e aplicar pragmaticamente esse conhecimento em nossas vidas.
Há mais de dez anos, Keleman me escreveu uma nota pessoal que agora edito: “o processo vivo tem total investimento na continuação da corporificação do mesmo. Por esta razão, ele está em constante diálogo consigo mesmo e este diálogo é sempre sobre o que fazer a respeito da sua situação imediata. O corpo fala através de sensações, sentimentos, motilidades. Entretanto, ele necessita falar de volta consigo mesmo de tal modo que ele possa influenciar o seu comportamento. Assim, o corpo tem o poder de influenciar a si mesmo, moldando a si mesmo em ações, inibindo a si mesmo ou agindo em relação a si mesmo. Ele faz isso através de um elegante sistema de feedback a que chamamos cérebro. O corpo organiza a si mesmo para falar consigo mesmo, secretando para si mesmo esse órgão que é capaz de receber de volta seus padrões de ação e falar consigo mesmo a respeito deles. Isso significa que há sempre uma relação do corpo com ele mesmo, mediada pelo cérebro. Esta relação ocorre do mesmo modo como o corpo regula seu próprio metabolismo, seus movimentos e motilidades, o modo pelo qual ele altera e regula as formas de suas expressões. Isso revela que o assunto principal do corpo não é apenas sobreviver, mas sobreviver através de uma relação consigo mesmo”.
(Keleman, 1996, e-mail pessoal)
Evidentemente, a vida e a evolução não nos deram esta herança maravilhosa porque nós somos especiais individualmente, mas porque esta herança nos permite aumentar a força e a diversidade dessa mesma herança – em nós e no pool da vida.
Entretanto, já sabemos que o capitalismo contemporâneo e a violência inerente ao seu funcionamento agem contra isso, tentando constantemente capturar este poder da vida e torná-lo consumidor de imagens, das fast forms, perversamente exercendo a ameaça de exclusão com sua dinâmica concentracionsta, atacando nossas reais conexões que compõe com nosso processo formativo, levando à eliminação das diferenças, conduzindo à homogeneização e consequentemente ao enfraquecimento do pool das subjetividades.
𝟑. 𝐔𝐦 𝐜𝐨𝐦𝐛𝐢𝐧𝐚𝐝𝐨: 𝐚 𝐩𝐫𝐚́𝐭𝐢𝐜𝐚 𝐜𝐚𝐫𝐭𝐨𝐠𝐫𝐚́𝐟𝐢𝐜𝐚 𝐞 𝐚 𝐩𝐫𝐚́𝐭𝐢𝐜𝐚 𝐝𝐨 𝐜𝐨𝐫𝐩𝐚𝐫
Cartografar essas paisagens sociais mutantes, das quais nós somos parte, tanto global quanto localmente, de acordo com os ensinamentos de Guattari, significa descrevê-las em detalhe, acompanhar suas mutações e velocidade de fluxos que as cortam e reconhecer as genealogias do corpar, em cada ecologia, detectando,no caso, as espécies de “fast forms” que infectam esses ambientes, enfraquecendo sua potência formativa. E, então, descobrir possibilidades e estratégias para trabalharmos sobre elas.
Com a “prática de corpar”, o grande segredo da evolução escondido dentro de nós para proteger a vida contra o roubo daquilo que nos permite continuar produzindo diversidade se revela. A atitude nessa prática é meditativa e, ao mesmo tempo, ativa sobre si.
Aplicando-a às “fast forms”, podemos identificar as configurações que nos capturaram(1º passo), reconhecer sua anatomia, seus limites, suas forças e tendências(passo 2). Utilizar então micromovimentos sobre as superfícies somáticas da forma para então intensificá-las e desintensificá-las, através dos micromovimentos sobre as bordas da forma, em pequenos incrementos (passo 3). Aí, descansamos. Como resposta, emergirão da profundeza formativa do organismo, como um sonho organísmico, esboços de um novo contorno subjetivo.
A seguir, repetiremos muitas vezes essa operação. Tentaremos solidificar e encarnar essa nova forma através da definição das paredes corporais e suas subpartes. Ao ativarmos essa operação formativa, estaremos tratando ao mesmo tempo da despotencialização gerada pelo o reflexo do susto que deu lugar para que as “fast forms” nos parasitassem e regenerando o reflexo da imitação para que preencha sua função originária no reconhecimento dos ambientes.
Vemos como, através dos mencionados micromovimentos das superfícies identificadas e configuradas muscularmente, seremos surpreendidos por novas formas mais atuais, conectivas e eficazes como recombinações e mutações recicladas e revitalizadas de moléculas das “fast forms” (passo 4). Finalmente, trataremos de estabilizar as diferenciações e testar sua funcionalidade em novas paisagens de sentidos e conexões (passo 5), estabilizando-as muscularmente e conectando-as ao fluxos do presente.
Uma clínica e uma educação que lidam com a subjetividade somática, hoje, têm que ser compreendidas como uma micropolítica, um modo de sustentar territórios de criação de corpos singulares, zonas dentro das grandes redes, resistentes à aceleração e sedução da sociedade do espetáculo, que, ao contrário do movimento geral, constituem a si mesmas em zonas de lentificação no tecido social.