
24/08/2025
Era uma vez a ‘miudeza’ em figura de gente. Tão frágil, tão pequenina, aquela menina! Quão indefesa, quão quebrável, quão mirrada pra assumir a culpa de um mundo inteiro. Meu Deus, quanta violência! Crueldade das grandes, daquelas imperdoáveis. A triste sina de ter nascido num corpo submetido à brutalidade do machismo. Corpo oprimido, corpo tolhido, corpo marcado, corpo doído. Que doideira! Depois dizem que endoidada é a mulher. Que endoide, pois, então! Muitas das vezes endoidar é a única maneira de se manter sã. Do contrário, vira amancebado da brutalidade. Ontem, casinha, roupinha, comidinha. Hoje, cama, mesa e banho. Coincidência, minha gente? Caixa de brinquedos coisa nenhuma! Aquilo era uma caixa de ferramentas. Isso sim!
Bem cantava o ditoso Cartola: “Preste atenção, querida. […] Mal começaste a conhecer a vida. […] O mundo é um moinho. Vai triturar teus sonhos. Vai reduzir as ilusões a pó” ( 1 ). E essa moagem tem nome. É a engenhosa da Dona Culpa! Perpetuada de geração em geração, assim moída, transmitida e insistentemente repetida, chega a parecer natural: mas só foi bem arquitetada. Quando a memória já não alcança o tempo das coisas elas se perdem dos inícios. Da filha à mãe, da avó à bisa: de onde veio tal molesta? Alguma escavadora de parentescos, a felizarda genealogista, pra descobrir as raízes de uma árvore familiar, cujo fruto podre é culpa em cima de culpa? A tataravó tadinha seria o último registro vivo da terrível façanha de aprisionar alguém, sem ter grades?
Há uma engrenagem, esmagando na surdina, a incontáveis mulheres. Elas têm feito das tripas coração pelos seus e pelos que não são seus. Conhecidos e estranhos, próximos e íntimos: estão todos dentro de uma mesma canoa, chamada de ‘cuidado’. E quem cuida de quem cuida senão as próprias mulheres? Quebrem os paus, joguem fora os remos, saiam desse rio caudaloso de culpas vãs! Canoa furada de asneiras, azucrinadora das ideias, futriqueira da vida alheia, catrevagem do moralismo, mal pagadeira porque só sabe criar dívidas inúteis: assim é a Dona Culpa. Deixem ela com quem, de fato, cometeu delitos.
PAULO CRESPOLINI
▪️Psicólogo - CRP 06/132391
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