27/02/2024
📱 Agende uma conversa on-line e entenda como o método psicanalítico pode te ajudar. É prático com o link para WhatsApp https://wa.me/message/RBON27SRVPCPI1 🔗
🟢 (11) 91999-2030
Curta o perfil para acompanhar nossos conteúdos sobre psicanálise e saúde mental, e compartilhe. 👍📣🔁
Mais conteúdo no site: www.rafaelsasso.com.br 🌎
Patologização e Medicalização. Você sabe o que é e como afeta a sua vida?
Você já parou para pensar que para cada época que já existiu na história da humanidade havia, naquele momento, uma forma específica de perceber e explicar os fenômenos? Exemplo: foi apenas há 450 anos que Copérnico demonstrou que a terra gira ao redor do Sol. Antes disso havia diversas outras formas de perceber e explicar fenômenos como o dia e a noite.
O mesmo vale para a relação que temos com os fenômenos que acometem o nosso corpo-mente. Conceitos sobre o que é “doença”, suas causas e como a tratar, constituem uma enorme parte da história da cultura humana. Como diz Paulo Roberto Ceccarelli, psicólogo, psicanalista e Doutor em Psicopatologia Fundamental:
Cada contexto histórico-político teve o seu discurso sobre as paixões: castigo dos deuses, disfunções humorais, possessão demoníaca, perda da razão, manifestação do inconsciente, fatores genéticos, desequilíbrio químico e outras tantas. (Ceccarelli, p2.).
Sendo assim, nos cabe a pergunta: qual é a lente pela qual percebemos e explicamos os fenômenos que acometem nosso corpo e nosso ser? Essa pergunta é importante por que é por esse conjunto de concepções sobre saúde e doença que seremos diagnosticados e tratados. Porém, há o desafio de compreendermos que esse conjunto de conhecimentos que pretendem “nos explicar para nos tratar” não se constitui de forma “natural” e perfeita, mas, antes, é produzida pela sociedade como o resultado de uma equação entre os diversos interesses e possibilidades no campo da cura e do controle dos sujeitos (tema clássico para Foucault). Isso envolve: governos, instituições de pesquisa, grandes corporações etc. até chegar, e também de alguma forma, ser influenciada pelos sujeitos em suas necessidades mais particulares.
Resumindo: no momento em que percebemos algo “fora do normal” em nós e decidimos buscar ajuda, estamos buscando acesso ao conjunto de conhecimentos que são historicamente determinados pelo conjunto em disputa dos diversos interesses nessa área. Eles não apenas determinam qual é o remédio a ser tomado, mas determinam o que é doença e saúde e é aí que precisamos estar atentos.
No contexto da saúde mental, patologizar é transformar em doença comportamentos ou sofrimentos que não necessariamente o são (Desinstitute, 2023). Como ato contínuo à patologização, vem a medicalização. Como colocado por Ceccarelli:
Gestos simples são patologizados: se você está angustiado, você tem um problema mental. Se você verificou mais de uma vez se a porta está bem fechada, você é neurótico. Enfim, ser “normal” - beber, apaixonar-se, chorar, não controlar as pulsões e reconhecer o retorno do recalcado, saber que não se é senhor em casa própria, rirmos de nós mesmos, problemas escolares comuns, de relacionamento, a dificuldade de fazer um luto - tudo isso que nos torna humanos está sendo patologizado. [...] Toda essa forma de controle passou a ser padrão de normalidade. Você está fora da norma? Não se preocupe: temos a molécula que vai resolver isto. (Ceccarelli, p7).
Esse processo está bem claro hoje em dia, por exemplo, em relação ao comportamento infantil. Em seu artigo “Infância e Patologização: crianças sob controle”, Andrea Raquel Martins Corrêa, diz que:
O que está em discussão é o predomínio de uma lógica patologizante, imposta às crianças de classes sociais diversas, na qual o doente é tão somente a própria criança, com pouca ou nenhuma responsabilização do adulto/educador. Não se incluem, para efeitos de um diagnóstico preciso, outros atores e grupos nos quais esta criança/adolescente está inserida. Geralmente, os sintomas são vistos como desequilíbrios bioquímicos, partindo das concepções neurocientíficas que dominam o pensamento da medicina atual. (Corrêa, p.3).
Um outro ponto importante desta reflexão é que na mesma medida que criamos enquadramentos normativos para corportamentos humanos, estamos criando um campo amplo de exclusão, ou seja, quem não se enquadra nesta norma é “anormal”, e assim se desenvolve uma cultura de classificação e medicalização de comportamentos que muitas vezes são classificados como contra produtivos para a sociedade:
Tanto crianças quanto adultos, então, devem “superar seus limites”, “ser o melhor dos melhores”, “brilhar em tudo o que faz”, respondendo de maneira eficaz à demanda dos superlativos [...] Em vez do questionamento, acompanhamos o trágico percurso das crianças que, ao não fornecerem a resposta esperada, são automaticamente rotuladas como doentes. Os sintomas que produzem revelam possivelmente formas de resistência, recursos para lidar contra o excesso de imposições, numa busca incansável pela criação de espaços de liberdade e espontaneidade. (Corrêa, p.6).
Trago este tema para reflexão pois se torna cada vez mais comum no dia a dia da clínica psicanalítica pacientes que chegam com diagnósticos fechados por especialistas, mas que, na maioria das vezes, desconsideram o fenômeno da patologização e suas consequências no seu próprio tratamento. Diagnósticos fechados de depressão, TDAH, transtorno de personalidade narcísica etc… se proliferam em velocidade estonteante, e muitas vezes são tomadas pelos como forma de poderem, eles próprios, se reconhecerem em suas dores, em um movimento para se situarem no universo dos diagnósticos com o qual podem finalmente encontrar sentido.* Se identificar. Não entender o que nos aflige é angustiante, a dúvida é sempre angustiante, e no caso da (psico)patologização a angústia é compreendida como algo a ser adormecido, desviado.
É neste ponto que vejo a psicanálise como uma excelente ferramenta “contra hegemônica” para abordar os afetos que acometem os pacientes e os deixam angustiados, muitos, de fato, provenientes dessa mesma sociedade que classifica os sujeitos pelas suas habilidades, enquanto procura jogar para escanteio as dores e sintomas provenientes daquilo que lhe falta e que lhe é desconhecido.
Georges Canguilhem, médico e epistemologista, grande pensador sobre o tema, tem em sua obra primorosa, “O normal e o patológico”, uma profunda construção teórica que nos ajuda a compreender que na medida em que “patologizamos”, retiramos todo um campo de “existir” dos pacientes, que se relaciona diretamente com a sua saúde. Não somos seres biológicos apenas, mas sujeitos constituídos por subjetividades que não podem ser reduzidas ou renegadas simplesmente na tentativa de normatizar e normalizar os indivíduos:
Não é, portanto, um método objetivo que qualifica como patológico um determinado fenômeno biológico. É sempre a relação com o indivíduo doente, por intermédio da clínica, que justifica a qualificação de patológico. Embora admitindo a importância dos métodos objetivos de observação e de análise na patologia, não parece possível que se possa — com absoluta correção lógica — falar em "patologia objetiva". É claro que a patologia pode ser metódica, crítica, armada de meios experimentais. Essa patologia pode ser considerada objetiva, em relação ao médico que a pratica. Mas a intenção do patologista não faz com que seu objeto seja uma matéria desprovida de subjetividade. (Canguilhem, 76)
Neste sentido, o processo psicanalítico é um processo formativo e curativo de si que precisa também considerar essas questões para que o paciente tenha a chance de poder escrever seu próprio caminho de cura lançando mão das ferramentas necessárias, “e” sem que as ferramentas se tornem a própria demanda. A isto estão implicados tanto os pacientes totalmente avessos à ideia de utilizar algum tipo de medicação, quanto os pacientes que têm dificuldade de compreender que nem toda a cura envolve fármacos. Toda cura envolve, isto sim, a implicação do sujeito e de suas subjetividades como o próprio caminho para a invenção do processo de cura que precisa para aplacar suas angústias.
É fundamental ressaltar a importância da utilização da medicação, sob orientação médica, em diversos casos. A reflexão que fazemos aqui é justamente sobre o abuso da lógica da normatização dos comportamentos, e da consequente medicalização de sintomas que são, apenas, e demasiadamente, humanos.
Rafael Sasso - Fevereiro de .2024
Bibliografia.
CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Editora Forense Universitária. São Paulo. 2009.
CECCARELLI, Paulo Roberto. A Patologização da normalidade. In. Estudos Psicanalíticos 33. Belo Horizonte, 2010.
CORRÊA, Andrea R. M.. Infância e Patologização: Crianças sob controle.In: Revista Brasileira de Psicodrama V18. 2010.
DESINSTITUTE. A medicalização e a patologização como fundamentos de exclusão e segregação. Por Thais Lopes Rodrigues e Jaqueline Marques. Artigo publicado em: www.desinstitute.org.br/noticias/ Fevereiro de 2023. Último acesso em Fevereiro de 2024.