
29/04/2024
“O Messias está morto” ( Por Susy Campos)
O Messias está morto! Sim, mas não aquele que veio à sua cabeça com olhos azuis e cabelo comprido, loiro e que muitas vezes está nos posts sobre fé e oração e às vezes estampa as traseiras de caminhão, este está bem vivo no imaginário colonizado do brasileiro. O Messias que está morto é aquele que nasceu na Palestina e não tinha como ter traços de homem branco, esse foi crucif**ado há muito tempo. Mas estou falando do Messias esse da foto acima do post! E essa notícia me chegou na última quinta feira na hora do almoço fissurando meu peito e me tirando o apetite. Dor que me surpreendeu pela indignação, inconformismo e raiva. Ele era um amigo do meu filho e por conseguinte se tornou uma presença familiar, embora não tão frequente pela distância geográf**a. Na verdade, o que eu sentia é que algo se rompera dentro de mim. Um pensamento martelava dentro da minha cabeça: eu havia dado pouco amor a ele, fiz uma lista mental: tinha dado um ano novo num sitio, um bolo de aniversário e palavras. Uma das palavras foi que ele estava sendo um homem “desistido”, e dessa palavra ele nunca esqueceu, rsrsrs. Toda vez que ele estava fazendo coisas esperadas dele me mandava um recado que ele não estava mais “desistido”. E o mais importante que dei a ele foi meu abraço sincero na despedida e a minha mão na barba dele que era macia, macia. Continuei sangrando por dentro, martelando o pensamento de frustração que tinha sido pouco o que havia dado e que agora não teria mais oportunidade de demonstrar amor, falar mais palavras que lhe fizessem sentido. Até que ao amanhecer a sexta feira às 5 e pouco da manhã quando acordei, esse texto atravessou o meu corpo quase me sufocando. Precisava escrever, dar-lhe mais palavras de alguma forma, pois a morte dele me soou como uma “desistência deselegante” da parte dele, confesso que senti raiva à princípio. Mas quando o meu filho me contou o que o médico disse sobre a causa da morte eu comecei a entender: falou que havia várias possíveis causas, o médico usou a metáfora de um edifício com várias rachaduras, fissuras e quando foi inundado pela infecção, pneumonia, etc., o prédio simplesmente se rompeu. Eu me pus a pensar de onde vieram as fissuras? Como aconteceram? De onde vieram os golpes que levaram embora um homem jovem de ap***s 42 anos? E então fiz o caminho de volta e agora talvez você pare de ler o texto por que chegou a hora de falar do racismo, do descaso e violência do sistema de saúde em relação às pessoas negras. Sim, vou racializar a morte do Messias. Mas te convido a ter coragem de continuar aqui comigo e encarar as palavras que quero que sejam por e para ele, o Messias morto. Quando você vê a foto dele o quede vê? O que lhe vem à mente? Um homem negro e obeso, totalmente fora dos padrões de beleza e aceitabilidade. Você pode pensar que ninguém tem culpa que ele não se cuidou o suficiente e morreu pelas comorbidades de sua saúde. Mas só pela foto você não vê é que no domingo ele resolveu ir sozinho para o hospital porque não estava aguentando de dor na perna causada por uma úlcera varicosa, que ele estava tratando há mais de um mês, tomando antibióticos fortíssimos que não fizeram tanto efeito. Ninguém investigou o que mais estava acontecendo? E a pneumonia? E a infecção que estava já se generalizando? E sim ele foi sozinho, e sim ele tinha família, e sim ele era amado! Mas cada um vivendo os desafios da sua própria existência, e o Messias não era aquele de pedir ou reconhecer que precisava de ajuda. Não tinha habilidade de dizer onde doía de verdade, sempre com uma piada id**ta engatilhada na boca. Muitos de nós homens e mulheres negros não temos tanta intimidade com o amor e respeito que precisa vir das relações fora do nosso grupo de convivência íntima que inclui pessoas brancas, vir da sociedade e de suas instituições. Aprendemos a aceitar o pouco que nos dão por não termos referência do que de fato temos direito muitas vezes, ainda estamos lutando por isso às duras p***s. Ainda estamos aprendendo a amar nossos corpos negros e não sabemos direito como fazê-lo, é recente demais as discussões sobre racismo e a importância do letramento racial. Mas o “Mex” como o meu filho costumava chama-lo, aceitava a amizade e o amor que tínhamos por ele, dava gosto de ver os dois juntos, voltavam a ser garotos! À medida que esse texto me atravessava logo cedinho, eu entendia melhor que ao perder o Messias, perdi um pouco o meu filho que também é um homem negro e fora dos “padrões” e também perdi a mim mesma que sou uma mulher negra e fora dos padrões. Chorei muito por ele, mas chorei por mim e pelo meu filho e por tantos homens e mulheres parecidos conosco. Entendi por que no ano passado assisti ao Musical de Martin Luther King por cinco vezes e chorei em todas elas, chorei por Carolina Maria de Jesus e pela morte de “bell hooks” chorei o nosso próprio luto. Lí intelectuais negros incríveis que nunca me foram apresentados durante minha vida escolar e acadêmica. Entendi através das fissuras no corpo do Messias as minhas próprias, a dos meus filhos, as da minha família e de todos os negros e negras.
O Messias está morto hoje e tem sido morto sistematicamente como a todos nós também. E hoje sexta, exatamente, li o posfácio do livro : “A cor do inconsciente de Izildinha Batista uma psicanalista negra que chegou só agora pra mim depois de 25 anos de formada psicóloga. O posfácio escrito pelo profº Jose Moura Gonçalves Filho que diz: “Sejamos mais radicais. Sem meu corpo percebido como alma, haverá choque ou conflito, no máximo haverá comandos, não haverá conversa. Um corpo só se sente corpo próprio, quando se sente alma. Só se sente alma quando conversam com ele (...) Sem alma não haverá conversas dos outros comigo não haverá conversas de mim comigo, não haverá clima para um entendimento entre minhas diversas pessoas, meus diversos eus.” (p. 179)
Os psicanalistas afirmam que o eu pode tornar-se intolerante contra tudo que o põe dividido, se o eu do branco se põe como homogêneo, único, sem diferenças jamais olhará o corpo do Messias para conversar com ele, jamais permitirá que ele exista numa conversa, ele não será alma portanto, jamais lhe foi permitido construir os seus eus, nem na escola, nem nos seus ambientes de trabalho, nem nos hospitais, etc.. O corpo dele foi fissurado por esse olhar que nos atravessa desconfiado quando ele andava atrás de alguém na rua, ou era perseguido em lojas, pois sua pele era a pele do crime como diria Baco Exu dos Blues e eu diria que a pele dele era a pele do inadequado, pele não aprovada pelos locais de trabalho onde passou, ele não foi validado ou reconhecido em sua beleza, portanto, não foi ele que desistiu, desistiram dele! Ele foi negado assim para si mesmo. Citando ainda o Profº acima: “O sentimento de fealdade é reverberação corporal de humilhação racial: sinto-me cada vez mais feio à medida que sou mais maltratado e abordado como inferior. O encolhimento da beleza vem sempre acompanhado de encolhimento moral: o corpo feio é o corpo submisso (...) É porque houve resistência que a beleza dos pretos é comerciada: a exploração mata ou explora o que não tenha conseguido matar”, Mas agora ele está de fato morto, mas já estava sendo morto muito antes, cada um de nós negros sendo mortos, lenta e sistematicamente e principalmente simbolicamente.
Por isso falo, escrevo, e escrevo, desejo desamparadamente conversar com os eus do Messias que não existiram por falta de conversa, quero que ele exista como alma, rosto e signo. Nosso corpo não é “coisa”, mas “manifestação de um mundo de alguém” (p.182), manifestação do nosso mundo.
O racismo, o desamor, o desprezo e a desumanização andam de mãos dadas e devoram nossos corpos para a preservação do pacto colonizador da branquitude e dos seus padrões que nos excluem e tragam nossas vidas e saúde. Você pessoa branca que chegou até esta altura no texto talvez não se reconheça como parte integrante desse pacto, assim como não se veja ou se sinta ra***ta, mas com certeza ao ver a foto do Messias morto, seu olhar o atravessou curioso mas não verdadeiramente interessado, por que ele vai se apresentar ao seu olhar ap***s como um homem negro e obeso, sem atrativos conhecidos e é exatamente essa a hegemonia que aprisiona o seu “eu” que nega o meu “eu” e o “eu “ do Messias. Nosso olhar de pessoa negra muitas vezes também negará essa conversa com pessoas como o Messias, fomos treinados a nos olhar com os olhos com os quais somos vistos afinal! Mas queremos nossos corpos livres desse atravessamento e desses golpes. “O corpo, livre, reza, dança, canta e age (...) Só os corpos livres podem praticar aparições e superar aparências, inovar o trabalho, impelir festas e arte.” O Messias tinha uma voz grave, melodiosa e profunda, um sorriso de criança, um humor ácido que incomodava e colocava muitos na defensiva, aqueles que não tinham coragem amorosa de encará-lo. Eu senti que amei pouco o Mex, porque eu, meu filho, minha família, a família dele, os amigos o amamos sozinhos, não tivemos ajuda da sociedade hipócrita e ra***ta, não tivemos os cuidados responsáveis das instituições como a escola, postos de saúde, hospitais, empresas que nos ajudassem a amá-lo com o que ele merecia e tinha direito. Nós nos amamos e amamos o Messias solitários e desamparados, fissurados e adoecidos, tentando existir através de uma alma nunca vista, nunca reconhecida e nunca permitida. Termino com as palavras do professor citado: “Nossa prisão e nossa emancipação nunca são independentes do como estamos no mundo e com os outros. E não haverá emancipação sem as conversas dos “eus” de todos nós, liberdade para que todos tenham direito de existir social, institucional, politica e simbolicamente.
“(p. 187).
(Susy de O. A. de Campos – Sábado 27 de Abril de 2024)