30/08/2025
Grande Veríssimo! 🌻
É A PRIMEIRA VEZ QUE VERISSIMO NOS FEZ CHORAR
Fabrício Carpinejar
Antes de Luis Fernando Verissimo, a crônica se centrava na primeira pessoa, no tom confessional, nas nuances biográficas, no plano interior.
Depois dele, nada mais foi igual. Surgiram os tipos universais: o amigo, a vizinha, o professor, o policial, o viajante.
Ao não falar de si, um tímido nos revelou por completo. Colocou o mundo no papel. Subverteu o modelo intimista pela narração, pelos diálogos, a partir da criação de personagens.
A crônica casou com o conto — e viveram em litígio para sempre.
Virou o território ficcional da terceira pessoa, capaz de retratar qualquer um, inclusive secretamente o próprio Verissimo.
Gigolô das palavras, como jocosamente se caracterizava, ou saxofonista dos pensamentos, o escritor favoreceu a plasticidade das ações, não mais se limitando à norma culta, capturando o coloquial das ruas.
Ele pregava: “A gramática precisa apanhar todos os dias para saber quem é que manda”.
Verissimo é inimitável, o mais cinematográfico de nossos tradutores, o mais teatral de nossos bardos, o maior cronista brasileiro pós-Rubem Braga, com cerca de cerca de 80 obras e mais de 5 milhões de exemplares vendidos.
Começou com o horóscopo e o copidesque no jornal Zero Hora, em 1966, e arrebatou colunas nas principais publicações do país, como Veja, O Estado de S.Paulo e O Globo. Manteve a sua atividade literária até janeiro de 2021, quando sofreu um acidente vascular cerebral (AVC).
Com sua fama estrondosa, o mítico Erico Verissimo, do monumento O Tempo e o Vento, passou a ser lembrado por ter sido o pai de Luis Fernando.
Em poucas linhas, ele desvendava dilemas comportamentais. Escrevia como quem desenhava: rápido, certeiro, irônico. O poder de síntese se aproximava de uma epifania.
Quem nunca se sentiu parte da Família Brasil, seus esquetes humorísticos satirizando a classe média nos anos 70 e 80? O lar se abastecia de conflitos geracionais entre a figura paterna conservadora e machista, a dona de casa lúcida e de paciência esgotada, e os filhos adolescentes, desafiando valores antiquados.
Quem não se politizou com as tirinhas das Cobras, protagonizadas por animais rastejantes antropomorfizados que conversavam entre si sobre os destinos do país?
Quem não se compadeceu da Velhinha de Taubaté, que foi concebida durante a ditadura militar e ficou famosa por ser “a última no Brasil que ainda acreditava no governo”?
Quem não riu com o Analista de Bagé, mais ortodoxo do que pomada Minancora, um psicanalista freudiano que resolvia mimimi com o joelhaço? Submetia o paciente a um golpe amnésico, provocando uma dor tão intensa que ele logo se abstraía dos aborrecimentos.
Quem não viu alguma tia representada na Dorinha e seu cortejo de socialites, buscando a eterna juventude por sucessivas e incansáveis intervenções estéticas?
Quem não desistiu de recorrer à espionagem acompanhando as peripécias de Ed Mort, um detetive particular pobre e trapalhão, um ímã de encrencas e de causas perdidas?
Quem não se valeu dos exemplos das Comédias da Vida Privada para não levar a sério os desentendimentos de casal? Era um jantar que dava errado, uma visita inesperada, um segredo mal guardado, um flerte perigoso.
O mestre gaúcho elaborou uma vivissecção do amor com seus blefes e chantagens, mostrando o drama do quase divórcio, da quase infidelidade.
Ele exorcizava o nosso desencanto com a evolução dos costumes, a recessão e a violência: “Não sei para onde caminha a Humanidade, mas, quando souber, vou para o outro lado”.
Mudava os estereótipos de lugar, produzindo reflexivo estranhamento. Assim como o divã do Analista de Bagé fora desconstruído para o atendimento num pelego, com tapete de pele de carneiro, o charme dos romances policiais se converteu no escritório de pulgas e traças de Ed Mort em Copacabana, com 117 baratas e um rato albino chamado Voltaire.
Os dados oficiais professam que Verissimo faleceu aos 88 anos, neste sábado (30), no Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre. Mas ele não morreu. É impossível que morra.
Ele sempre nos fez rir, é a primeira vez que nos faz chorar.
Minha coluna no jornal Zero Hora, GZH, última página, Porto Alegre (RS), 30/8/2025:
https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/carpinejar/noticia/2025/08/o-mestre-timido-de-nossas-ruidosas-alegrias-cmey6a7pr02dy0167sucu9f6k.html