05/10/2014
Resenha do texto:
KEHL, Maria Rita. Em defesa da família tentacular. In: GROENINGA, G. C. & PEREIRA, R. C. Direito de Família e Psicanálise: rumo a uma nova epistemologia. Rio de Janeiro: Imago, 2003.
Por:
Débora Cristina Rocha da Costa
Psicóloga – CRP 07/13640
O presente texto de Maria Rita Kehl traz uma reflexão a respeito da idealização de um modelo de família, que se percebe através da escuta clínica. A autora refere, inicialmente, que uma das queixas muito freqüente no consultório está relacionada ao lamento por não se ter uma família dita “normal”, ou ainda, neste sentido, por não se ter uma verdadeira família.
A verdade é que no contexto contemporâneo a família que se forma está orientada em uma lógica diferenciada daquela dos padrões éticos e estéticos vivenciados pela sociedade burguesa do início do século XIX a meados do século XX no Ocidente, e apresenta, portanto, uma outra configuração.
O que se percebe é que prevalece um discurso institucional aberto estimulado e veiculado por entidades consagradas socialmente como a imprensa, a escola, e os profissionais da área da educação, e até mesmo da área psi, que condiciona os atuais problemas sociais à “desestruturação” da família.
Mas de que família se fala quando se fala em família normal, estruturada, verdadeira, tradicional? Pai, mãe e filho (s)? Casamento monogâmico e documentado? Hierarquia e patriarcalismo? Não seria este modelo justamente o que permitiu a Freud, em sua época, realizar uma leitura da neurose? A que custo (psíquico, sexual, emocional) este modelo se sustentou na modernidade? Não seria este modelo um ideal de amparo do pai? Mas de quê amparo se fala, então? De um amparo à continência do desejo, já que este modelo traz também uma certa impossibilidade de escolha?
Neste último século, não se pode negar o deslocamento do lado das mulheres – inserção no mercado de trabalho, descoberta e o uso do anticoncepcional – e as conseqüências das múltiplas possibilidades de escolha que isto traz. Deste modo, um modelo em que o pátrio poder rege e centraliza a ordem das coisas não faz mais sentido, embora ainda seja idealizado. Porém, ainda assim, se paga um preço por esta liberdade de escolha: a desinstitucionalização da família como laços sólidos e duradouros e a dívida por não estabelecermos os laços da mesma forma que as gerações passadas estabeleceram.
O que rege as relações nos tempos atuais são as leis dos afetos e impulsos se***is, padrões não tão confiáveis e duradouros. Bem-estar, prazer, satisfação imediata são as leis de mercado que perpassam o dia-a-dia do sujeito contemporâneo.
Maria Rita Kehl denomina FAMÍLIA TENTACULAR a um novo tipo de família, que não é mais extensa, como a pré-moderna e que aos poucos vai perdendo a característica nuclear da família patriarcal e burguesa. Família que tem como característica a inversão da dominação masculina e que exige uma nova conceitualização, pois são ditas como co-parentais, recompostas, biparentais, homoparentais, etc.
Família tentacular: irmãos não co-sangüíneos convivem com padrastos, madrastas das novas uniões de seus pais e estabelecem vínculos profundos com pessoas que não fazem parte do “(...) núcleo original de suas vidas” (KEHL, 2003: 169). São árvores genealógicas hiper-ramificadas. A base erótica e, portanto, instável, de sustentação dos casais já não mais é escondida. Os filhos não são mais o objetivo único da união conjugal e quando o casal rompe os laços, eles se tornam a prova viva das apostas no amor que um dia os pais idealizaram. Surge, então, a função fraterna, na qual os irmãos parecem ser os laços mais duradouros, os vínculos mais confiáveis em relação ao que se poderia esperar dos adultos. Função esta complementar a função paterna na constituição do sujeito.
A família e a crise ética contemporânea: Seriam os novos arranjos familiares os responsáveis pela crise ética que ocorre na sociedade contemporânea? Percebe-se que há uma contradição, quando justamente, os grupos responsáveis pela contestação à família dos anos 60, hoje são justamente aqueles que reivindicam um retorno a esta família nuclear: pares homosse***is, por exemplo, lutam pela institucionalização de sua união, pela adoção de filhos. Para Maria Rita, a família nuclear, hoje, está sendo mais valorizada do que nunca, pois traz para os sujeitos a possibilidade de abrigo ao desamparo que assola os sujeitos contemporâneos.
Como proposta de solução para a questão anteriormente exposta, Maria Rita coloca que, independentemente do arranjo familiar (pai, mãe, madrasta, padrasto, dois pais, duas, mães, etc.), o sujeito irá se subjetivar edipicamente, desde que alguém se encarregue da função paterna e dos cuidados inerentes a função materna. De modo geral, são estas as condições que configuram as possibilidades de uma criação baseada na lei do incesto, e que permite ao sujeito se tornar parte da comunidade humana, um ser de linguagem, de desejo e barrado.
Neste sentido, do privado para o público, a assunção do papel de pai ou mãe, não depende de quem o exerce (se são pais separados, mães solteiras, pais homosse***is, madrastas ou padrastos), mas, sim, de que a pessoa que o exerce esteja implicada e responsabilizada em sua função. Para tanto, o fundamento se baseia no desejo de maternidade ou no desejo de paternidade. O abandono que as crianças sofrem é, acima de tudo, um abandono moral, decorrente de um adulto ou mesmo adolescente, que não banca sua diferença de geração diante delas.
Fotos: Família Terapêutica - Espaço de Atendimento Psicológico Infantil.