06/10/2022
Medscape
Notícias e Perspectivas
O segredo da longevidade pode estar nas fezes
Muitos fatores podem comprometer a saúde intestinal ao longo dos anos. A alta ingestão de açúcar, o estresse, o uso de antibióticos... tudo isso está ligado a alterações negativas no microbioma intestinal, e pode aumentar o risco de doenças.
Mas e se você pudesse apagar todos esses danos e fazer com que o seu intestino voltasse a funcionar como quando você era mais jovem e saudável?
Talvez seja possível, segundo cientistas, a partir da coleta de uma amostra das fezes na juventude e da devolução dessas fezes ao intestino mais tarde na vida.
Embora a ciência necessária para endossar essa proposta ainda não tenha chegado lá, alguns pesquisadores afirmam que não deveríamos esperar. Eles estão solicitando que os bancos de fezes existentes permitam que as pessoas comecem a depositar suas fezes desde já; assim, caso a ciência seja disponibilizada, o material estará lá para ser usado.
Mas como seria isso?
Primeiro, você iria a um banco de fezes e forneceria uma amostra de fezes fresca, que seria analisada para detecção de doenças, higienizada, processada e armazenada.
Aí, se mais para frente você tiver alguma doença, como doença inflamatória intestinal, doença cardíaca ou diabetes tipo 2 (ou se fizer alguma terapia que elimine o seu microbioma, como antibioticoterapia ou quimioterapia), os médicos poderão usar suas fezes preservadas para "recolonizar" o seu intestino, restaurando-o ao seu estado anterior saudável, disse o médico Dr. Scott Weiss, professor de medicina na Harvard Medical School, Estados Unidos, e coautor de um artigo recente sobre o tema. Isso seria realizado em um procedimento médico chamado transplante de microbiota f***l (TMF).
O momento da coleta é fundamental. A amostra deve ser obtida quando a pessoa está saudável (digamos, entre 18 e 35 anos de idade) ou antes que a probabilidade de uma doença crônica seja alta, disse o Dr. Scott. Porém, se você ainda estiver saudável aos 30, 40 ou até 50 anos, coletar uma amostra ainda poderia beneficiá-lo posteriormente.
Se pudéssemos criar um sistema de armazenamento como esse, potencialmente poderia tratar doenças autoimunes, doenças inflamatórias intestinais, diabetes, obesidade e doenças cardíacas, ou até mesmo reverter os efeitos do envelhecimento. Como fazer isso acontecer?
Os atuais bancos de fezes
Embora os bancos de fezes existam, as amostras armazenadas não são destinadas aos doadores, e sim a pacientes doentes que esperam tratar alguma doença. Usando o transplante de microbiota f***l, os médicos transferem o material para o cólon do paciente, restaurando a microbiota intestinal útil.
Algumas pesquisas mostraram que esse tipo de transplante pode ajudar no tratamento de doenças inflamatórias intestinais, como a doença de Crohn ou a colite ulcerativa. Estudos em animais sugeriram que o transplante ajude a tratar a obesidade, aumentar a longevidade e reverter alguns efeitos do envelhecimento, como o declínio da função cerebral relacionado à idade. Outros ensaios clínicos estão analisando o potencial como tratamento contra o câncer, disse o Dr. Scott.
No entanto, fora do laboratório, o transplante de microbiota f***l é usado principalmente para tratar a infecção por Clostridioides difficile (C. diff), causada pelo crescimento excessivo dessas bactérias. Funciona até melhor do que o uso de antibióticos, segundo as pesquisas.
Mas antes de qualquer coisa, é preciso encontrar um doador saudável, e isso é mais difícil do que se imagina.
Encontrando amostras fecais de pessoas saudáveis
Existe uma certa repulsa à ideia do transplante de microbiota f***l, mas armazenar substâncias corporais não é novidade. Os bancos de sangue, por exemplo, são comuns no Brasil, e os bancos de sangue do cordão umbilical estão ficando cada vez mais populares. Os doadores de es***ma são muito procurados e os médicos transplantam regularmente rins e medula óssea em pacientes necessitados.
Sendo assim, por que somos tão exigentes em relação às fezes?
Parte do motivo pode ser porque as fezes (assim como o sangue) podem carregar doenças, por isso é tão importante encontrar doadores saudáveis. O problema é que, surpreendentemente, isso pode ser bem difícil.
Para doar o material f***l, os indivíduos devem passar por um rigoroso processo de triagem, disse o Dr. Majdi Osman, diretor médico da OpenBiome, uma organização sem fins lucrativos de pesquisa de microbiomas.
Até recentemente, a OpenBiome realizava um programa de doação de fezes, mas mudou o seu foco para a pesquisa. Os potenciais doadores eram rastreados para doenças orgânicas, doenças psiquiátricas, presença de patógenos e resistência a antibióticos. A taxa de aprovação era inferior a 3%.
"Adotamos uma abordagem muito cautelosa, pois a associação entre doenças e o microbioma ainda está sendo desvendada", disse o Dr. Majdi.
O transplante de microbiota f***l também traz riscos, embora aparentemente brandos. Os efeitos colaterais incluem diarreia leve, náuseas, dor abdominal e fadiga. O motivo? Até mesmo as fezes do doador mais saudável podem não se misturar perfeitamente com as suas.
É aí que entra a ideia de usar as fezes do próprio indivíduo, disse o Dr. Yang-Yu Liu, Ph.D., pesquisador de Harvard que estuda o microbioma e assinou o artigo mencionado acima como primeiro autor. Não apenas isso é mais interessante, como também pode ser uma "combinação" melhor para o corpo.
Você deveria armazenar as suas fezes?
Embora os pesquisadores digam que temos motivos para estarmos otimistas em relação ao futuro, é importante lembrar que ainda existem muitos desafios. O transplante de microbiota f***l está em fase inicial de desenvolvimento, e ainda há muito o que aprender sobre o microbioma.
Não há garantia, por exemplo, de que restaurar o microbioma de alguém a um estado anterior, sem doenças, controlará as doenças de forma definitiva, disse o Dr. Scott. Se os genes aumentam as chances de ter Crohn, por exemplo, é possível que a doença retorne.
Também não sabemos por quanto tempo as amostras de fezes podem ser preservadas, disse o Dr. Yang-Yu. Os bancos de fezes atualmente armazenam o material f***l por um ou dois anos, não décadas. Para proteger as proteínas e as estruturas de ADN por tanto tempo, as amostras provavelmente precisariam ser guardadas na temperatura de armazenamento do nitrogênio líquido, ou seja, -196 °C (atualmente, as amostras são armazenadas a cerca de -80 °C). Mesmo assim, seriam necessários te**es para confirmar se os frágeis micro-organismos presentes nas fezes sobreviveriam.
Isso levanta outra questão: quem vai regular tudo isso?
A Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos regulamentou o uso do transplante de microbiota f***l como uma forma de tratamento para a infecção por C. diff, mas, como o Dr. Yang-Yu apontou, muitos gastroenterologistas consideram a microbiota intestinal como um órgão independente. Nesse caso, o material f***l humano poderia ser regulado da mesma forma que o sangue, os ossos ou até mesmo os óvulos.
O banco de sangue do cordão umbilical pode ser um modelo útil, disse o Dr. Yang-Yu.
"Não precisamos começar do zero."
Além disso, há a questão do preço. Os bancos de sangue do cordão umbilical também podem ser um ponto de referência nesse caso, disseram os pesquisadores. Eles cobram cerca de 1.500,00 a 2.820,00 dólares pela primeira coleta e processamento, e uma taxa anual para o armazenamento de 185,00 a 370,00 dólares.
Apesar das incógnitas, uma coisa é certa: o interesse pelo banco f***l é real e está aumentando. Pelo menos uma empresa de microbiomas, a Cordlife Group Limited , com sede em Singapura, anunciou que começou a permitir que as pessoas armazenem suas fezes para uso futuro.
"Mais pessoas deveriam falar, e pensar, sobre esse assunto", disse o Dr. Yang-Yu.
Fontes
Dr. Scott Weiss, professor de medicina da Harvard Medical School, EUA.
Dr. Majdi Osman, diretor médico da OpenBiome, EUA.