22/02/2019
A Rede de Pesquisa de Psicanálise e Infância do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo (FCL-SP) manifesta seu repúdio à Nota Técnica 11/2019 do Ministério da Saúde, por considerar que ela representa um enorme retrocesso em relação à lei 10.216/01 sancionada em 2001 que prevê a substituição gradual de hospitais psiquiátricos por uma rede de atenção psicossocial (RAPS).
Especificamente no que se refere às crianças e adolescentes, a Nota afirma: “Deve-se colocar como exemplo o caso de internação de crianças e adolescentes em unidades psiquiátricas. Vale ressaltar que não há qualquer impedimento legal para a internação de pacientes menores de idade em Enfermarias Psiquiátricas de Hospitais Gerais ou de Hospitais Psiquiátricos. A melhor prática indica a necessidade de que tais internações ocorram em Enfermarias Especializadas em Infância e Adolescência. No entanto, exceções à regra podem ocorrer, sempre em benefício dos pacientes”.
Expressamos nossa veemente indignação frente a tais posições, que apontam para a direção oposta ao processo longo, contínuo e gradual de reversão da antiga prática de confinamento de crianças e adolescentes existente no Brasil, prática essa decorrente da histórica construção desigual da nossa sociedade e que provocou inúmeros casos de flagrante crueldade e desumanidade já amplamente documentados.
A Nota afronta, ainda, o Estatuto da Criança e do Adolescente/Lei 8.069/90 (BRASIL, 1990), do qual destacamos os artigos 3º., 4º. e 5º. que se referem, em resumo, à proteção integral que proporcione o desenvolvimento, inclusive mental, à responsabilidade da família e da sociedade de assegurar seus direitos em condições de liberdade e dignidade e o repúdio a qualquer forma de violência e opressão.
A Nota contradiz explicitamente o documento “Atenção Psicossocial a crianças e adolescentes no SUS – Tecendo redes para garantir direitos” (Ministério da Saúde/Conselho Nacional do MP, 2014), segundo o qual: “na lógica do isolamento dos ‘desviantes’, a privação de liberdade por intermédio da institucionalização foi um dos meios empregados para segregar crianças e adolescentes pobres, autores de atos infracionais, com deficiências e com transtornos mentais, entre outros tidos como ‘incapazes’” e reafirmando que: “Na dimensão da saúde enquanto produção de uma comunidade de sujeitos responsáveis pelo cuidado de si e do outro, a questão essencial é a garantia do direito à palavra. Não há responsabilização possível sem que seja garantida a escuta daquele a quem se quer responsabilizar. Ao falarem sobre si e ao se identificarem com suas próprias histórias, a criança e o adolescente veem possibilidades de encontrar novos significados e novas formas de inserção na sociedade e na família”.
Lembramos, outrossim, do posicionamento da 175ª Assembleia Ordinária do Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA): “o recolhimento compulsório de crianças e adolescentes em situação de rua e/ou uso de álcool, crack e outras dr**as acarreta a privação de liberdade de modo arbitrário.”
Contra essa lógica de isolamento e privação de liberdade, destacamos os avanços significativos das últimas décadas, com a criação dos CAPSi (Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil), bem como as políticas públicas de inclusão educacional e social que foram fruto de um amplo e democrático processo de debate envolvendo profissionais, usuários e familiares.
Enquanto psicanalistas não podemos nos calar em relação ao risco inadmissível aberto por essa Nota Técnica 11/2019 em relação a crianças e adolescentes em sofrimento psíquico e suas famílias. Seguimos apostando nas redes que possam garantir o respeito a sua condição de sujeitos de direito e de desejo.
Coordenadoras da Rede de Pesquisa de Psicanálise e Infância do FCL-SP
Ana Laura Prates Pacheco
Beatriz Oliveira
Maria Claudia Formigoni
(desenho by Luiza Prates Pichirilli)