
14/08/2023
“Acordar. Respirar. Pensar. Existir. Não há um verbo que não doa durante o luto. Talvez dormir alivie, que é quando a dor adormece. Momento em que o medo desperta: será preciso enfrentar o dia seguinte.
Perder quem amamos é morrer um pouco, mesmo que o coração insista em bater. O luto nos torna um lugar ruim. Queremos fugir de nós mesmos, emprestar outra vida, perder a memória, trocar de papel. Qualquer coisa que nos tire a dor com a mão, que nos salve do horror de sentir que alguém foi amputado de nós. Não há alívio imediato.
A morte é uma verdade disfarçada de absurdo. Não se arrepende, não volta atrás, é desfecho. O verdadeiro “para sempre”. É telefone que não toca, silêncio que ensurdece, pesadelo que não acaba, falta que jamais deixará de ser.
Enlutar-se é se mudar para uma espécie de cela blindada, da qual saímos somente para intermináveis e dolorosos banhos de sol. Uma solitária para a qual queremos voltar logo – embora triste e sombria, ela ainda é o lugar onde nos sentimos menos desconfortáveis.
Eu me lembro de vagar pela cidade como numa cena sem áudio. Olhava ao redor e me perguntava com que direito as pessoas sorriam, se dentro de mim as luzes estavam apagadas. É assim até que a gente se acostume. A morte se repete muitas vezes. Ao acordar, está lá a morte de novo. A cada lembrança, outra morte. Até que em nós ela morra de fato — e isso demora. [...]
[...] O que mais doía no luto era não conseguir que as pessoas sentissem a minha dor. Falei compulsivamente. Escrevi de forma obsessiva. Até que as pessoas também chorassem. E elas choraram – mais as suas dores que as minhas, é verdade, mas isso também é empatia. E quando cada momento latente de falta se transformava em um texto delicado, quando as palavras conseguiam fazer o outro vestir a minha dor, a tristeza virava alegria: que alívio me sentir compreendida. Numa espécie de alquimia incidental, transmutei dor em sorriso.
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