Ipc-Rs Instituto de Psicanálise Clínica do Rio Grande do Sul

Psicologia Infantil, Psicologia Clínica, Psicanálise, Psicopedagogia, Nutricionista, Coach, Fonoaudiologia, Terapia Ocupacional

21/08/2025
27/07/2025

Quando o outro já não está — e ainda assim você insiste

Sobre o descompasso entre quem se oferece e quem já decidiu não se implicar

Em certas relações, o desencontro não acontece no fim, mas no início. Logo nos primeiros gestos, nas primeiras respostas. Há quem chegue disposto a construir algo — mesmo que de modo gradual, mesmo que sem nome. O vínculo ainda é nascente, mas o afeto já se insinua: na escuta atenta, na vontade de repetir a presença, na tentativa de abrir espaço interno para um outro. Do lado oposto, porém, pode vir um corte seco, indiferente, camuflado de liberdade: “se quiser sair com outras pessoas, tudo bem.”

Essa afirmação, muitas vezes lida como maturidade emocional, pode operar, na verdade, como uma forma precoce de desimplicação. Um modo de colocar o outro no campo da indiferenciação — nem objeto, nem parceiro, nem ameaça — apenas alguém com quem se partilha circunstancialmente o tempo. O sujeito que enuncia tal frase se posiciona fora da cena desejante. Ele participa do jogo, mas se recusa a ser afetado pelas regras. Não há investimento, só presença performativa.

A psicanálise nos oferece um caminho para entender esse tipo de impasse. Quando há afeto, há necessariamente risco. Estar disponível a alguém é permitir que a estrutura psíquica se mova, mesmo que minimamente. É deixar-se tocar por algo externo que reativa o interno: lembranças, expectativas, medos, fantasmas. Todo início carrega uma repetição — não há relação que não convoque cenas anteriores. E é justamente por isso que muitos recuam. Manter-se à margem, evitar a construção de laço, é muitas vezes uma forma de evitar a reatualização da falta.

Por outro lado, aquele que manifesta desejo de continuidade, que demonstra incômodo diante da frieza, costuma ser acusado de “sentir demais”, de “esperar algo que não foi prometido”. Mas o que está em jogo raramente é promessa: é presença simbólica. Não se trata de esperar garantias, mas de identificar sinais de disponibilidade. E quando esses sinais não vêm, quando o outro oferece apenas uma espécie de neutralidade emocional que, no fundo, é ausência de desejo, instala-se o desequilíbrio.

Estar disponível afetivamente não é o mesmo que se iludir. É justamente o contrário: é sustentar o olhar aberto mesmo diante da possibilidade de perda. É suportar o tempo do vínculo sem precisar anestesiá-lo com distrações, jogos ou terceiras presenças. E isso exige estrutura. Recuar pode ser sintoma de defesa, mas se aproximar é, muitas vezes, sinal de coragem psíquica.

Há uma diferença radical entre quem evita envolvimento por temor e quem se abre para a experiência com lucidez. Quando uma relação se forma entre esses dois polos — um que se oferece e outro que já se antecipa como ausente —, o vínculo se organiza em desequilíbrio desde o início. Não se trata de intensidade demais, mas de falta de reciprocidade mínima.

O desencontro, então, não é efeito do tempo ou das circunstâncias. Ele já estava presente na forma como cada sujeito se posicionou diante da possibilidade de ser afetado.

E por mais que o discurso do desapego pareça moderno, leve ou maduro, é preciso dizer: há maturidade também em sentir. Há ética no gesto de desejar. Há consistência na escolha de sustentar o risco de um laço.
Nem toda ausência é respeito.
Nem todo silêncio é liberdade.
E nem todo “tá de boa” é sinônimo de saúde.

Às vezes, é só defesa.
Às vezes, é só alguém que já decidiu não estar — e disse isso da forma mais elegante que conseguiu.

Reconhecer isso não anula o afeto, mas reorganiza a direção do investimento.
Quando a presença do outro já é ausência em ato, permanecer é consentir com o vazio.

Nessa hora, o gesto mais lúcido não é insistir —
é recuar antes que a espera se transforme em ferida.
É sair não por fraqueza, mas porque nada foi oferecido que justificasse permanecer.
Não há vínculo onde só um se implica.
Não há reciprocidade onde só um sustenta desejo.
E insistir onde já se anunciou a ausência é fabricar, pouco a pouco, a própria dor.

Às vezes, o cuidado consigo começa no corte precoce.
Antes que a carência do outro se torne um espelho da sua.

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Sheila Schildt Psicóloga, Psicanalista, Supervisora Clínica, Professora Coordenadora no IPC RS, Especialista em Psicologia Infantil e TEA (Transtorno do Espectro Autista), aplicadora ABA, com experiência em Avaliação Psicológica. CRP 07/18674.
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26/07/2025

O amor como enigma: quando o desejo do outro nos abandona

Há uma dor que não tem nome no DSM, mas que atravessa o sujeito como uma ferida narcísica aberta: a de nunca ser escolhido. Não se trata apenas da ausência de um parceiro ou da frustração romântica. É algo anterior, mais primitivo — a sensação de não ser visto como suficientemente digno de permanência.

Essa dor não começa no encontro amoroso, mas é nele que ela se atualiza. Cada silêncio, cada afastamento, cada vínculo que se desfaz sem consistência toca um ponto da estrutura que clama: “o que há em mim que nunca basta?”

A psicanálise nos ensina que o sujeito se constitui no campo do desejo do Outro. Ser amado não é só uma experiência afetiva, é um modo de ser reconhecido como existente. Quando o Outro não deseja, ou deseja mal — de forma invasiva, negligente ou intermitente — instala-se no psiquismo uma busca incessante por reparação. Mas o que se busca não é o amor em si. É o reconhecimento que faltou na origem.

O problema é que, ao se tornar consciente desse processo, o sujeito se vê diante de um paradoxo: não quer mais se submeter à mendicância afetiva, mas ainda carrega a fome ancestral por um olhar que o legitime. Então o amor passa a ser vivido como luta — entre o que se sabe e o que ainda se deseja. Entre a maturidade conquistada e a criança interna que chora pelo colo que nunca veio.

Quem atravessa esse dilema — lúcido, ético, emocionalmente disponível — sofre pela escassez de encontros verdadeiros, e sofre também pela impossibilidade de voltar a aceitar o que antes já bastava. Trata-se de um ponto de não-retorno psíquico: quando o sujeito se recusa a trair a própria inteireza para caber nos moldes alheios. A dor, nesse caso, não é patológica. É o sintoma de um crescimento que ainda não encontrou espelho.

O que fazer com isso? Talvez, como dizia Lacan, suportar o real sem sentido do desejo, sustentando o vazio sem preenchê-lo com qualquer presença que anestesie momentaneamente. Talvez, como dizia Winnicott, reconhecer que há momentos em que o cuidado só pode vir do próprio gesto de se segurar.

Essa dor que parece não ter nome, na verdade, tem estrutura. Tem história. Tem repetição. E ao ser dita — com letras, com corpo, com escuta — ela pode começar a se deslocar do acting para o símbolo.

Porque só o que pode ser simbolizado escapa de se repetir. E, enquanto não há encontro no real, é possível sustentar o desejo como espaço — não como falta, mas como abertura. Nem todo amor precisa ser vivido para ser verdade; alguns precisam apenas não mais ser encenados como suplência.


Sheila Schildt Psicóloga, Psicanalista, Supervisora Clínica, Professora Coordenadora no IPC RS, Especialista em Psicologia Infantil e TEA (Transtorno do Espectro Autista), aplicadora ABA, com experiência em Avaliação Psicológica. CRP 07/18674.

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14/07/2025

Você Não Estava Louca

Inversão, gaslighting e a corrosão da autoridade subjetiva nas relações afetivas

Há uma forma de violência relacional que não deixa marcas visíveis, mas corrói silenciosamente a estrutura psíquica de quem a sofre. Ela não se manifesta em gritos, nem em proibições explícitas. Ela age através da inversão: faz com que a pessoa passe a duvidar de si mesma para manter um vínculo com alguém que jamais assume responsabilidade pelo efeito que produz.

Essa experiência, que hoje chamamos de gaslighting, é descrita na psicanálise como um processo de desestabilização do sujeito na sua própria leitura da realidade. É quando a percepção interna — o afeto, a intuição, o incômodo — passa a ser tratada como inadequada, exagerada, sem fundamento. O sujeito deixa de confiar nos próprios critérios. Passa a se observar de fora, tentando se ajustar ao que o outro demanda, ainda que o outro nunca diga diretamente o que quer. É uma armadilha discursiva que mantém o desejo cativo.

Lacan chamaria isso de recalque da certeza suposta: a função simbólica da linguagem que nos permite validar o que sentimos. Quando essa certeza é corroída, a mulher passa a viver no terreno da dúvida constante. O que era intuição vira paranoia. O que era exigência justa vira carência. O que era um pedido básico — presença, verdade, continuidade — passa a ser interpretado como exigência excessiva.

Esse mecanismo não opera só na superfície do afeto. Ele atinge o princípio de realidade do sujeito, especialmente em relações onde há investimento amoroso intenso. Quando o outro insiste em negar o que está evidente — traições emocionais, omissões, distâncias calculadas —, a mulher não encontra sustentação simbólica para nomear o que sente. E então começa a fazer o movimento mais perigoso: adapta-se à negação alheia.

Esse processo tem um alto custo: a distorção de si mesma.
Para manter o vínculo, ela recalca o que vê, o que sabe, o que sente.
É nesse ponto que o amor se torna um espaço de anulação subjetiva.

E o mais grave: o outro, muitas vezes, não precisa ser abertamente cruel. Basta que ele não confirme a realidade que ela vê. Essa recusa simbólica já basta para que a dúvida se instale.
Ela não é chamada de louca — mas é levada a se sentir como tal.
E isso basta para produzir silêncio, culpa, submissão emocional.

O rompimento desse ciclo não acontece com o fim do relacionamento.
O rompimento verdadeiro ocorre quando a mulher volta a confiar na própria percepção.
Quando ela é capaz de dizer:

"O que eu sentia fazia sentido. Eu estava certa em desconfiar. Não era loucura. Era intuição. E eu não pedi demais."

Esse é o ponto de virada.
Não se trata de perdoar ou não perdoar o outro — mas de restaurar a autoridade sobre si mesma.
É quando ela percebe que o amor só existia à custa do próprio apagamento.
E que, nesse caso, o fim não é perda — é reparação.

Toda mulher que já viveu essa inversão psíquica precisa saber:
O que você sentia era real.
O que você pedia era legítimo.
E o que você sofreu não foi drama — foi desamparo fabricado.

A saída não está em esquecer o que aconteceu, mas em reinscrever sua história a partir da própria palavra.
Nomear o que doeu.
Reconhecer o que foi distorcido.
E, principalmente, sustentar o que nunca deveria ter sido posto em dúvida:
a sua capacidade de saber o que sente.

Sheila Schildt
Psicóloga, Psicanalista, Supervisora Clínica, Professora Coordenadora no IPC RS
Especialista em Psicologia Infantil e TEA (Transtorno do Espectro Autista), aplicadora ABA
CRP 07/18674

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12/07/2025

A Liberdade de Bastar-se: A Ausência do Outro e a Presença de Si

Jantar sozinha, pela primeira vez, pode parecer um gesto ordinário. Mas para algumas mulheres, essa cena é um corte — silencioso, íntimo e revolucionário. É como abrir uma porta que sempre esteve trancada por dentro. Um rito discreto, mas profundamente simbólico: sentar-se à mesa sem escudos, sem testemunhas, sem companhia, e ainda assim estar inteira.

Na clínica, aprendemos que a subjetividade se constrói no campo do Outro. O desejo do sujeito nasce a partir do desejo do Outro, como nos ensina Lacan. Desde cedo, aprendemos a existir por meio do olhar alheio: sermos vistas, desejadas, validadas. E assim vamos nos moldando — ocupando lugares que façam sentido dentro de narrativas coletivas, muitas vezes masculinas, sociais, familiares.

Mas o que acontece quando esse Outro se ausenta? Quando não há ninguém ao lado? Nenhum interlocutor? Nenhum olhar que nos diga quem somos ou como deveríamos estar?

A primeira resposta costuma ser o desconforto. Uma sensação de exposição, de inadequação, como se estar sozinha em público fosse sinônimo de abandono ou fracasso. Mas, ao permanecer, algo muda. O desconforto cede lugar à presença. E o silêncio — antes incômodo — se torna campo fértil para escutar a si mesma.

Winnicott nos lembra que a capacidade de estar só é uma conquista psíquica. Não é o isolamento, nem o narcisismo, mas um estado de maturidade emocional: a possibilidade de estar consigo sem se perder, sem implodir. Estar só sem estar vazia.

A mulher que janta sozinha, pela primeira vez, talvez se sinta melancólica. Não porque esteja triste, mas porque intui — mesmo sem saber nomear — que está rompendo com algo muito antigo. Está fazendo o luto de uma versão de si que precisava do outro para existir. Está abrindo mão da fantasia de completude relacional para sustentar, no real, a própria incompletude. E, ainda assim, permanecer.

Há, nesse gesto, um toque de subversão: bastar-se. Não como quem se fecha ao mundo, mas como quem se permite habitar o próprio mundo interno. É um bastar-se que não nega o desejo de vínculo, mas que o desloca do lugar de necessidade para o de escolha. A mulher que se senta sozinha à mesa aprende que o desejo não precisa mais ser encenado para o Outro — ele pode ser escutado a partir de dentro.

Esse é o ponto onde liberdade e melancolia se tocam. Liberdade de não precisar ser explicada. Melancolia por tudo que foi preciso perder para chegar até ali.

Porque, no fim, bastar-se não é sobre autossuficiência — é sobre deixar de se abandonar. É ocupar o próprio lugar na mesa da vida sem esperar ser convidada, sem temer a ausência de testemunhas. É saber-se falta e, ainda assim, escolher ficar. Ficar consigo. Ficar na própria pele. Ficar no próprio nome. Jantar sozinha, pela primeira vez, é o corpo dizendo: “eu estou aqui, e isso basta.” Não para sempre, não como sentença — mas como possibilidade real de existir sem concessão. Uma mulher que se sustenta no vazio do Outro não está sozinha. Está inteira. E isso muda tudo.

27/06/2025

Términos e a Difícil Tarefa de Sustentar o Vazio

O fim de uma relação não traz alívio imediato, por mais necessária que a separação tenha sido.
O que vem, antes de qualquer recomeço, é o vazio.
A cama grande demais. O silêncio que ecoa. A rotina que sobra.
O corpo que ainda espera por hábitos partilhados — mesmo sabendo que já não havia partilha há muito tempo.

A psicanálise não promete cura rápida.
Ela nos ensina que o luto é trabalho.
E que o luto amoroso é, muitas vezes, o luto por um ideal:
do que se investiu, do que se suportou, do que se quis que fosse.

Separar-se de alguém é também separar-se da posição que se ocupava com esse outro.
É abrir mão da economia psíquica construída em torno do vínculo.
E isso custa.

Custa sustentar a falta sem tamponá-la com reposições apressadas.
Custa resistir à compulsão de retorno — não ao outro em si, mas à tentativa de restaurar um sentido onde já não havia.

Porque o reencontro, se acontecer, não trará co***lo.
Traz o peso da repetição.
A dor de se ver voltando ao lugar exato de onde se teve coragem de sair.

Segundo Freud, o luto é uma separação de libido.
É preciso retirar o investimento feito no objeto perdido e reconduzi-lo ao eu — algo que não se faz sem resistência.
É nesse momento que o sujeito se depara com o real da perda: o reconhecimento de que o outro não sustentava mais a função simbólica que um dia ocupou.

Lacan nos lembra que o desejo é sempre desejo do Outro.
No término, o que mais angustia não é apenas a ausência da pessoa, mas o colapso da cena fantasmática em que o sujeito se inscrevia.
Sustentar o vazio é, portanto, não apenas deixar o outro partir, mas aceitar que um pedaço do que se era também se perde — e isso é da ordem do inominável.

É preciso atravessar esse intervalo entre o fim e o depois.
E isso se faz com presença:
com a escuta da angústia, com o acolhimento da inquietação,
com a escolha, dolorosa e cotidiana, de não se abandonar para silenciar o desconforto.

O vazio não é o inimigo.
É o espaço onde, enfim, algo diferente poderá nascer — quando for tempo.


Sheila Schildt Psicóloga, Psicanalista, Supervisora Clínica, Professora Coordenadora no IPC RS, Especialista em Psicologia Infantil e TEA (Transtorno do Espectro Autista), aplicadora ABA, com experiência em Avaliação Psicológica. CRP 07/18674.
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27/06/2025

Quando sentir se torna insuportável

Há momentos em que o término de uma relação escancara não apenas o fim do vínculo com o outro, mas uma ruptura interna muito mais profunda: o colapso de uma sustentação psíquica que, mesmo frágil, ainda organizava o mundo interno de alguma forma. E é nesse ponto que o luto amoroso se torna mais árduo — não apenas por quem se foi, mas pelo que desaba dentro de quem permanece.

A dor que emerge após o rompimento não se limita à saudade ou ao afeto perdido. Muitas vezes, ela é a irrupção de um vazio anterior, mais antigo, que a relação ajudava a tamponar. Mesmo nos vínculos disfuncionais, há uma forma de amparo psíquico — precária, mas existente. O término, portanto, rompe não só com a presença concreta do outro, mas também com a fantasia de continuidade, pertencimento e valor.

A partir desse ponto, muitos sujeitos entram em um ciclo de intensa autocobrança: “Era uma relação ruim, por que ainda dói?” — como se a legitimidade da dor dependesse da qualidade objetiva do laço. Como se só fosse aceitável sofrer por aquilo que foi bom.

Essa culpa por sofrer revela uma operação narcísica de censura interna, em que o sujeito se recusa a acolher sua própria carência. Desejar, precisar, sentir falta — tudo isso é imediatamente interpretado como regressão, fraqueza, ou dependência. Em vez de ser escutada, a dor é julgada. O afeto é submetido ao crivo de um supereu implacável, que exige racionalidade e força onde há, antes de tudo, perda e desamparo.

Na lógica psicanalítica, o luto não é linear. É um trabalho psíquico de reorganização frente à perda de um objeto investido. E, como tal, não responde a critérios morais ou utilitários. Não se trata de julgar se “valia a pena sofrer” por determinada relação, mas de compreender que houve investimento libidinal — e todo investimento, por mais contraditório que tenha sido, quando retirado, deixa um rastro.

Negar essa dor é negar a própria capacidade de se afetar. É tentar manter intacta uma imagem ideal de si, como alguém que não precisa de ninguém, que não se abala, que segue em frente. Mas esse ideal é insustentável — e quando imposto como regra interna, se transforma em sofrimento psíquico.

O sujeito que se permite atravessar esse luto — mesmo quando a relação finda não era boa — abre espaço para uma reconfiguração simbólica. Enfrenta o vazio não como fracasso, mas como possibilidade de escuta. Escuta do que faltou, do que se buscava, do que ainda insiste como desejo.

Aceitar a carência não é rendição. É o primeiro passo para que ela deixe de dominar silenciosamente a vida psíquica. Sentir falta, sofrer, desejar ser acolhido — tudo isso é parte da estrutura de um sujeito desejante. O trabalho analítico consiste justamente em dar lugar a essas faltas, não para suprimi-las, mas para que possam ser simbolizadas.

É nessa travessia que o luto encontra seu fim: não no esquecimento, nem na negação, mas na possibilidade de viver a falta sem ser esmagado por ela.

Essa dinâmica aparece com frequência na clínica: pacientes chegam envergonhados por ainda estarem sofrendo após o fim de vínculos que eles mesmos reconhecem como desgastados ou até mesmo destrutivos. Diante disso, muitas vezes não pedem acolhimento — pedem perdão por estarem em luto. Pedem desculpas por sentirem.

É comum ouvirmos frases como: “Mas era um relacionamento horrível, por que ainda sinto tanto?” ou “Já devia ter superado”. O sofrimento, nesse caso, é duplamente interditado: primeiro, pela perda em si; depois, pelo julgamento interno que desautoriza a dor. A escuta analítica se faz, então, no atravessamento desse supereu punitivo que exige superação imediata, como se houvesse um tempo correto para sofrer, ou um padrão legítimo de dor.

Cabe ao analista sustentar essa travessia, oferecendo um espaço onde a carência possa ser nomeada sem ser ridicularizada, onde a dor possa ser acolhida sem ser diagnosticada como falha. Não se trata de reforçar uma posição vitimista, mas de legitimar o afeto que insiste, mesmo quando não é racionalmente compreendido. É nesse ponto que a análise opera: ao permitir que o sujeito reconheça, sem culpa, que sua dor é real — e que seu desejo de não sofrer mais não precisa vir à custa do silenciamento de si.

Sheila Schildt
Psicóloga, Psicanalista, Supervisora Clínica, Professora Coordenadora no IPC RS
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23/06/2025

Quando uma mulher escolhe a própria solidão, o mundo treme um pouco.

Porque ela não está apenas recusando um homem.
Ela está recusando uma estrutura inteira:
a de que sua vida só vale se for para alguém.
A de que seu corpo deve ser atravessado.
A de que sua presença só é legítima se houver uma mão ao lado, uma criança no colo, um plano que envolva nós.

Ela não diz “não” ao amor.
Ela diz “não” ao enredo que a colocou como margem, como espera, como silêncio adaptado.

Essa mulher — que o mundo às vezes chama de fria, difícil ou egoísta —
na verdade só cansou de traduzir afetos que nunca lhe foram devolvidos.
Cansou de servir como espelho para que o outro se reconhecesse homem.
Cansou de fingir que doía menos do que doía.
Cansou de aceitar a repetição como se fosse destino.

Ela não virou inimiga do amor.
Mas do pouco.
Do raso.
Do esforço disfarçado de companheirismo.

Ela não está sozinha porque ninguém a quis.
Está sozinha porque, pela primeira vez, quis a si mesma com inteireza.
E percebeu que essa escolha é incompatível com certos pactos antigos,
em que ser mulher significa estar sempre um passo atrás.

Ela não anuncia.
Não grita.
Não escreve bilhete de despedida.
Mas um dia ela se recolhe.
Silencia.
Reaparece outra.

E, quando (ou se) o outro percebe, ela já não deseja mais voltar.
Não por orgulho.
Mas porque o preço da volta é a própria perda.
E ela já pagou caro demais por existir em migalhas.

Ela escolhe não ter com quem dividir o vinho,
mas também não precisar esconder a própria sede.

Ela escolhe a solidão como escolha.
E, nisso, se reconstrói.

Porque talvez — e só talvez — o amor que um dia vier,
vai ter que pedir licença pra entrar.
Tirar os sapatos.
E entender que agora o chão é outro.
O corpo é outro.
E ela não é mais mulher de aceitar migalha dizendo que é banquete.


Sheila Schildt Psicóloga, Psicanalista, Supervisora Clínica, Professora Coordenadora no IPC RS, Especialista em Psicologia Infantil e TEA (Transtorno do Espectro Autista), aplicadora ABA, com experiência em Avaliação Psicológica. CRP 07/18674.
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09/06/2025

Nem todo amor é encontro. Às vezes, é apenas a repetição de uma dor aprendida cedo demais.
O sujeito ama com a estrutura que aprendeu — e, quase sempre, essa estrutura inclui ausência, recusa, humilhação ou negligência como forma de vínculo. Aprende-se a esperar, a compensar, a aceitar pouco. Aprende-se a chamar de amor aquilo que nunca foi.

O parceiro atual não é a mãe. Nem o pai.
Mas é alguém que, por complementariedade de sintomas, encaixa-se exatamente na lógica de uma ferida que ainda não foi simbolizada.
E por isso falha.
Não por crueldade — mas porque a falha é estrutural ao tipo de amor que se repete.
O sujeito oferece o que não tem, esperando que o outro finalmente dê o que falta. Mas o outro também opera desde suas próprias falências.
E assim, repetem-se: um pedindo sem saber, o outro negando sem perceber.

A clínica nos mostra que muitos vínculos se constroem nessa complementariedade inconsciente — em que a frustração mútua é a única garantia de continuidade.
Romper esse ciclo exigiria mais do que boa vontade. Exigiria transformação mútua:
de um lado, um sujeito disposto a não se deixar mais ferir nos mesmos lugares;
de outro, alguém disposto a sair da função que sempre ocupou, ainda que lhe seja familiar, confortável ou defensiva.

O corte real não se dá quando se termina uma relação.
Até porque, quando o movimento é apenas romper, sem elaboração simbólica, a cena se repete com um novo parceiro, depois outro, e outro — ad infinitum.
O verdadeiro corte se dá quando o sujeito reconhece que o vínculo não é sustentado por amor, mas por sintoma.
E, ainda que haja afeto, o que se repete é a lógica da falta: o excesso de um e a ausência do outro, o colapso da escuta, a recaída em cenas onde ninguém se encontra — apenas se reencena.

Sair disso não é simples.
Mas começa quando alguém, pela primeira vez, decide não mais amar como aprendeu, mas como precisa.



Sheila Schildt
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20/05/2025

Uma companheira morreu.

Assassinada pelo homem que um dia disse amá-la.
Na frente da filha pequena — agora testemunha do indizível.
A cena inscreve no corpo infantil o impossível de simbolizar.
A infância ferida pelo real.

O amor virou morte.
A pulsão atravessou o laço e se fez destruição.
Não foi um surto. Não foi um acaso. Foi feminicídio.
Ato falho de uma cultura que ainda se sustenta no ódio ao feminino.

Vivemos em um laço social forjado na dominação.
Na tentativa de calar o desejo da mulher.
Toda mulher que ousa desejar por si mesma ameaça a ordem fálica.
E o que o masculino fragilizado não sustenta, ele tenta eliminar.

A psicanálise nos ensinou: não há ato sem gozo.
E o gozo do feminicida é o da posse, da aniquilação do outro.
É o gozo mortífero de quem não suporta a falta,
de quem não tolera a existência de um desejo que não o inclui.

Cada mulher morta é a repetição do recalque social mal sucedido.
O retorno do reprimido sob a forma de horror.
Não é só o luto. É a ameaça constante de sermos a próxima.
É o olhar paranoico, o corpo em alerta, o medo como rotina.

A criança que viu a mãe morrer agora carrega o real sem escuta.
O trauma fixado na imagem, sem linguagem que sustente.
O simbólico falhou. O Outro falhou.
E a inscrição do horror permanece crua, sem metabolização.

Não há laço possível quando o amor se faz campo de extermínio.
A lei se mostra impotente.
A cultura se cala.
A escuta se ausenta.

Quantas de nós ainda terão o desejo esmagado, o corpo violado,
o nome apagado sob o discurso da normalidade?

Chega.
É preciso dizer com toda força:

PAREM DE NOS MATAR!

Não é súplica. É denúncia.
É furo no tecido do social.
É a emergência do real que não se cala mais.

É resistência. É sobrevivência.
E é também, ainda, aposta em um mundo onde o desejo da mulher possa existir sem ser punido com a morte.

Sheila Schildt
Psicóloga

18/05/2025

Dia das Mães: o amor, a ausência e aquilo que não se diz

Para muitas pessoas, o Dia das Mães é tempo de celebração. Um almoço em família, uma mensagem carinhosa, um gesto de cuidado. É dia de agradecer — por tudo o que foi dado, por tudo o que se pôde receber.

Mas nem sempre é assim. Nem toda relação entre mãe e filho cabe num cartão bonito. Há mães que não estiveram. Mães que estiveram demais. Mães que amaram como puderam — e nem sempre isso foi o suficiente. Há filhos que sentem culpa por não amarem como se espera. Outros que tentam há anos costurar uma ferida que não fecha.

A psicanálise nos ensina que a maternidade não é ideal. É humana. Marcada por falhas, ambivalências, repetições. Uma mãe não é uma deusa, mas uma mulher atravessada por sua própria história. Um filho não é um presente, mas um sujeito em formação, que precisa se separar para existir.

É possível amar e ter mágoa. É possível sentir falta e, ao mesmo tempo, alívio pela distância. É possível, inclusive, desejar ser mãe e ter medo de repetir a própria mãe. Ou decidir não ser mãe e ainda assim carregar o peso de ter sido filha.

Neste Dia das Mães, celebre — se for possível. E se não for, permita-se sentir o que vier. Nem sempre o amor se apresenta como afeto. Às vezes, ele aparece na ausência, no silêncio, na tentativa de entender o que nunca foi dito.

Seja como for, que o dia de hoje abra espaço para algo verdadeiro: seja um abraço, uma lembrança, uma lágrima ou o começo de uma escuta.

Sheila Schildt Psicóloga, Psicanalista, Supervisora Clínica, Professora Coordenadora no IPC RS, Especialista em Psicologia Infantil e TEA (Transtorno do Espectro Autista), aplicadora ABA, com experiência em Avaliação Psicológica. CRP 07/18674.

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