27/06/2025
Quando sentir se torna insuportável
Há momentos em que o término de uma relação escancara não apenas o fim do vínculo com o outro, mas uma ruptura interna muito mais profunda: o colapso de uma sustentação psíquica que, mesmo frágil, ainda organizava o mundo interno de alguma forma. E é nesse ponto que o luto amoroso se torna mais árduo — não apenas por quem se foi, mas pelo que desaba dentro de quem permanece.
A dor que emerge após o rompimento não se limita à saudade ou ao afeto perdido. Muitas vezes, ela é a irrupção de um vazio anterior, mais antigo, que a relação ajudava a tamponar. Mesmo nos vínculos disfuncionais, há uma forma de amparo psíquico — precária, mas existente. O término, portanto, rompe não só com a presença concreta do outro, mas também com a fantasia de continuidade, pertencimento e valor.
A partir desse ponto, muitos sujeitos entram em um ciclo de intensa autocobrança: “Era uma relação ruim, por que ainda dói?” — como se a legitimidade da dor dependesse da qualidade objetiva do laço. Como se só fosse aceitável sofrer por aquilo que foi bom.
Essa culpa por sofrer revela uma operação narcísica de censura interna, em que o sujeito se recusa a acolher sua própria carência. Desejar, precisar, sentir falta — tudo isso é imediatamente interpretado como regressão, fraqueza, ou dependência. Em vez de ser escutada, a dor é julgada. O afeto é submetido ao crivo de um supereu implacável, que exige racionalidade e força onde há, antes de tudo, perda e desamparo.
Na lógica psicanalítica, o luto não é linear. É um trabalho psíquico de reorganização frente à perda de um objeto investido. E, como tal, não responde a critérios morais ou utilitários. Não se trata de julgar se “valia a pena sofrer” por determinada relação, mas de compreender que houve investimento libidinal — e todo investimento, por mais contraditório que tenha sido, quando retirado, deixa um rastro.
Negar essa dor é negar a própria capacidade de se afetar. É tentar manter intacta uma imagem ideal de si, como alguém que não precisa de ninguém, que não se abala, que segue em frente. Mas esse ideal é insustentável — e quando imposto como regra interna, se transforma em sofrimento psíquico.
O sujeito que se permite atravessar esse luto — mesmo quando a relação finda não era boa — abre espaço para uma reconfiguração simbólica. Enfrenta o vazio não como fracasso, mas como possibilidade de escuta. Escuta do que faltou, do que se buscava, do que ainda insiste como desejo.
Aceitar a carência não é rendição. É o primeiro passo para que ela deixe de dominar silenciosamente a vida psíquica. Sentir falta, sofrer, desejar ser acolhido — tudo isso é parte da estrutura de um sujeito desejante. O trabalho analítico consiste justamente em dar lugar a essas faltas, não para suprimi-las, mas para que possam ser simbolizadas.
É nessa travessia que o luto encontra seu fim: não no esquecimento, nem na negação, mas na possibilidade de viver a falta sem ser esmagado por ela.
Essa dinâmica aparece com frequência na clínica: pacientes chegam envergonhados por ainda estarem sofrendo após o fim de vínculos que eles mesmos reconhecem como desgastados ou até mesmo destrutivos. Diante disso, muitas vezes não pedem acolhimento — pedem perdão por estarem em luto. Pedem desculpas por sentirem.
É comum ouvirmos frases como: “Mas era um relacionamento horrível, por que ainda sinto tanto?” ou “Já devia ter superado”. O sofrimento, nesse caso, é duplamente interditado: primeiro, pela perda em si; depois, pelo julgamento interno que desautoriza a dor. A escuta analítica se faz, então, no atravessamento desse supereu punitivo que exige superação imediata, como se houvesse um tempo correto para sofrer, ou um padrão legítimo de dor.
Cabe ao analista sustentar essa travessia, oferecendo um espaço onde a carência possa ser nomeada sem ser ridicularizada, onde a dor possa ser acolhida sem ser diagnosticada como falha. Não se trata de reforçar uma posição vitimista, mas de legitimar o afeto que insiste, mesmo quando não é racionalmente compreendido. É nesse ponto que a análise opera: ao permitir que o sujeito reconheça, sem culpa, que sua dor é real — e que seu desejo de não sofrer mais não precisa vir à custa do silenciamento de si.
Sheila Schildt
Psicóloga, Psicanalista, Supervisora Clínica, Professora Coordenadora no IPC RS
Especialista em Psicologia Infantil e TEA (Transtorno do Espectro Autista), aplicadora ABA, com experiência em Avaliação Psicológica.
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