01/03/2024
Avó, eu tenho a culpa, sou eu que limpo, diz a Gracinha muito convicta puxando à força o pano das minhas mãos, para limpar o iogurte que entornou. As coisas nas mãos da Gracinha deslizam, entornam-se, partem-se, e ela, orgulhosamente, assume a culpa e quer limpar. E, oh meu Deus, o estrago ainda é maior, porque não limpa, espalha! Mas eu deixo, claro que deixo, esta minha neta de quase 4 anos adora 'limpar', varrer, ajudar a fazer a cama, mas na senda da limpeza e organização deixa um rasto de destruição. Ontem, além de entornar o iogurte e de assumir veementemente 'a culpa', partiu um dos 'corninhos' do caracol de cerâmica que a Clara Croft me ofereceu, made by her, e eu fiquei desolada. A Gracinha já queria colar, o Bernardo também, e antes que estilhaçassem o caracol tive de me zangar e assumir a autoridade de avó, quem cola sou eu.
Hoje não dei aulas de manhã, tenho estado num 'dolce far niente', a ler coisas e coisetas no telemóvel, sobretudo biografias de mulheres fortes e decididas, a guardar-me para a hora em que os vou buscar ao colégio aqui ao fundo da rua. Como saem à mãe, são vadios e gostam da liberdade da rua, de fugir, de fintar os carros no cruzamento aqui em baixo, de me verem arrepelar os cabelos e berrar por eles, de me fazerem correr rua acima, rua abaixo, um pensamento surgiu-me com toda a clareza: os netos, além de serem um presente (envenenado) dos deuses, têm um papel muito importante na saúde física e mental das avós, fazem-nos mexer, correr, fazer desporto, que é vital para todas e temos tendência (eu tenho) para me deixar acomodar. Gosto de marcha rápida e a Gracinha é uma acompanhante perfeita de quilómetros, embora se distraia por tudo e por nada. O Bernardo nem se fala, tem 7 fôlegos, portanto aqui está mais uma função higiénica dos netos, fazer as avós correrem atrás deles.
Deixa-me resguardar, poupar o fôlego, que o dia vai ser longo. Depois de ir buscá-los, de a Gracinha distribuir beijos e abraços pelos coleguinhas, e nunca mais se despachar, de se meter no meio do cruzamento a desafiar os carros, o que vale é que devido às bandas sonoras altas, passam muito devagar e tenho tempo de a trazer a espernear e fazer cenas, porque quer ser ela a fugir no último minuto sem ser mandada, ainda tenho um jantar de um amigo que faz anos de 4 em 4 anos.
Eles são muito amigos embora às vezes, muitas vezes, andem à bulha. Quando é o Bernardo que se mete no cruzamento, é a Gracinha que berra: cuidado, mano, cuidado, sai daí!, numa aflição imensa. Isto faz-me lembrar quando ele tinha 2 anos e andava 'a abrir' na trotineta e atravessou uma rua movimentada em Londres, eu atrás dele, os carros a afastarem-se em ziguezague, bem, eu ia morrendo da aflição e da correria.
Os que estes netos contribuem para o meu bem-estar físico e psicológico, 'a natureza é muito perfeita', como dizia o prestigiado ginecologista Meleiro de Sousa, quando engravidei da Francisca mesmo usando o DIU e ele o retirou deixando-a ilesa e cheia de vontade de vir ao mundo. O que seria de mim se ela não tivesse vindo a este mundo e me providenciasse dois mafarricos que me fazem correr, estafar-me todos os dias durante, pelo menos, duas horas. Depois mais meia hora a arrumar e limpar quando vão para casa a desafiar a mãe, porque não querem ir nem querem ficar, e eu a rezar para que vão, mas também a querer que fiquem.
'Amor é um querer mais que bem querer/é um contentamento descontente...'
P.S. Acabaram de sair, ainda bem que me estive a poupar porque não houve nada que não fizessem dentro e fora de casa. Estou a tremer de cansaço, contrariam a regra da ubiquidade, porque eles têm essa capacidade.