13/08/2025                                                                            
                                    
                                                                            
                                            Memórias de um Médico Veterinário 
Uma vez, costurei a garganta de um cão com linha de pesca, na traseira de uma pick-up. 
O dono segurava uma lanterna e chorava como uma criança.
Era ’79, talvez ’80. Uma estrada de terra, perto da fronteira do Tennessee. 
Sem clínica. Sem mesa limpa. Sem anestesia, apenas um gole de álcool para aguentar. 
Mas o cão sobreviveu. Até hoje, aquele homem me envia um cartão de Natal, mesmo que o cão já tenha partido há muito… e a esposa também.
Sou veterinário há quarenta anos. 
Quatro décadas com sangue debaixo das unhas e pelos grudados à roupa. 
Antes, consertávamos com o que havia, não com o que se podia faturar. 
Hoje, metade do meu tempo é explicando códigos de seguro enquanto, na sala ao lado, um beagle sangra.
No início, pensei que salvar vidas fosse o propósito. 
Agora sei: é segurar os pedaços quando elas se desfazem.
Comecei em 85, recém-formado na Universidade da Geórgia. Tinha cabelo. 
Tinha esperança. A minha primeira clínica era um prédio de tijolos, numa estrada de cascalho. 
O telefone era rotativo, a geladeira rangia e o aquecedor funcionava só quando queria. Mas as pessoas vinham: agricultores, operários, aposentados, caminhoneiros.
Eles pediam pouco. Um ponto aqui, uma vacina ali. A eutanásia, quando era hora e todos sabíamos quando era hora. 
Sem debates, sem vergonha pública, sem “protocolos alternativos”. 
Só um silêncio cúmplice entre uma pessoa e o seu cão, confiando-me o peso de decidir.
Conduzi, muitas vezes, até celeiros onde cavalos jaziam com a perna partida. 
Ou até alpendres, onde cães velhos já não comiam há dias. Sentava-me ao lado do dono. Esperava. Não apressava. Porque, naquela época, segurávamos até o último suspiro. 
Hoje, assinam papéis e perguntam se podem buscar as cinzas na próxima semana.
Lembro-me do primeiro abate. 
Rex, pastor alemão. Atropelado. 
O dono, um ex-veterano da Segunda Guerra, duro como arame. 
Quando disse que não havia salvação, ele vacilou. Beijou o focinho e murmurou: “Você fez bem, rapaz.” 
Depois olhou-me: “Faça rápido. Não o faça esperar.” Eu fiz.
Não dormi aquela noite. Foi aí que entendi: este trabalho é sobre amor  e o peso inevitável de perder algo que nunca viverá tanto quanto nós.
Agora é 2025. O cabelo ficou branco. As mãos tremem. A clínica tem paredes brancas, softwares, marketeiros me pedindo para fazer TikToks com pacientes. Eu disse que preferia castrar-me.
Antes, usávamos instinto. Agora, algoritmos.
Semana passada, uma mulher entrou com um bulldog em falência respiratória. Sugeri intubação. Ela pegou o telemóvel e pediu “segunda opinião” a um influenciador. Apenas acenei. O que mais poderia fazer?
Pensei em me aposentar no COVID. Mas, então, um garoto aparece com gatinhos do celeiro do avô, olhos brilhando quando o deixo alimentá-los. Ou um golden retriever se aproxima demais de uma cerca farpada, e o dono me traz uma torta no dia seguinte. 
Ou um idoso liga apenas para agradecer, não pelo tratamento, mas por eu ter f**ado ao seu lado em silêncio quando o cão morreu.
É por isso que ainda estou aqui.
Porque, apesar dos aplicativos, dos diagnósticos via Google, e da pressa do mundo…, uma coisa não mudou: as pessoas ainda amam seus animais como família.
E esse amor, quando profundo, é silencioso. Uma mão trêmula no pelo. Um adeus sussurrado. Uma carteira esvaziada sem hesitar. Um homem chorando porque o seu cão não verá o outono.
Há meses, um ex-presidiário entrou com uma caixa de sapatos. Dentro, um gatinho magro, com a perna presa e pulgas por todo lado. 
Ele disse: “Não tenho um centavo, mas pode fazer alguma coisa?”
Olhei o gatinho. Ele miou como se me conhecesse. “Deixe-o aqui. Volte sexta-feira.”
Cuidámos dele. Batizámos de Boomer. Sexta, o homem voltou com meia torta de maçã e lágrimas nos olhos. Disse: “Ninguém me deu algo sem perguntar o que eu tinha antes.”
Respondi: “Animais não ligam para o que você fez. Só para como você os segura agora.”
Quarenta anos. Milhares de vidas. Algumas salvas. Outras não. Todas importaram.
Na minha gaveta trancada guardo lembranças: fotos, coleiras, bilhetes, a pegada de um gato, o desenho de uma menina que me chamou de herói por ajudar o hamster dela a respirar. 
Tiro essas memórias quando a clínica está vazia, para me lembrar de quando ser veterinário era dirigir na lama à meia-noite, costurando com linha de pesca e esperança…
E segurando-os até o último suspiro.
Se aprendi algo, é isto: você não vai salvar todos. Mas é melhor tentar, custe o que custar.
E, quando for hora de dizer adeus, você f**a. Não vacila. Não apressa. F**a até o silêncio preencher a sala.
Essa parte não está nos livros.
Essa parte é o que nos torna humanos.
E eu não trocaria isso por nada no mundo.
(via Carlos Drummond de Andrade)