06/10/2023
A BIBLIOTERAPIA COMO RECURSO TERAPÊUTICO NO AJUSTAMENTO AO PROCESSO DE SAÚDE/DOENÇA
A força da história é tamanha que narrador e ouvintes caminham juntos na trilha do enredo e ocorre uma vibração recíproca de sensibilidades (...). A ação se desenvolve e nós participamos dela, ficando magicamente envolvidos com os personagens; mas sem perder o senso crítico, que é estimulado pelos enredos. (Silva, 1997, citado por Bernardino et al., 2012, p. 201)
A origem da palavra “terapia” vem do hebraico e, em grego, tem o sentido de prevenção e prospeção, ou seja, muito mais do que a cura. Mood e Limper (1973, citados por Bernardino, 2012, p. 199) entendem por biblioterapia “a utilização de materiais de leitura selecionados como coadjuvante terapêutico em medicina e psiquiatria; a orientação na solução de problemas pessoais por meio da leitura dirigida; o tratamento para promover a recuperação do utente na sociedade”. Muito mais do que prazer, a leitura e a literatura permitem ao leitor, por processos de identificação, apropriação e projeção, uma espécie de segurança e afastamento dos conflitos decorrentes do desconforto da doença. Ao ler ou ouvir a história, o utente depara-se com personagens e conflitos que produzem uma ilusão estética, que o faz distanciar-se dos seus problemas e confere-lhe uma identificação com o problema do personagem. Esta experiência fá-lo aceitar o seu problema e o tratamento proposto, diminuindo a ansiedade e o medo próprios da doença.
Um texto literário pode permitir a catarse de conflitos, agressividade e emoções disruptivas, permitindo trabalha-las de forma terapêutica (Monteiro, 2004). Todavia, de realçar que “a bilioterapia contempla não apenas a leitura, mas também o comentário que lhe é adicional” (Caldin, 2001, citada por Azevedo & Oliveira, 2016, p.4). Para integrar o seu efeito terapêutico é necessário o acompanhamento de um terapeuta que, por meio do diálogo, promova a reflexão após leitura do texto. Assim, as palavras ganham significados num debate interativo entre os elementos – livro, biblioterapeuta e leitores/ouvintes – conduzindo o leitor/ouvinte a uma tempestade de ideias (brainstorming), transportando-o para um mundo de possibilidades.
A biblioterapia é, então, utilizada como forma de ajudar crianças, adolescentes/jovens ou adultos a lidarem com os problemas, físicos ou emocionais, com recurso à literatura. O terapeuta, ao enlaçar as inúmeras conotações às palavras, estabelece a ponte entre o lúdico e a aprendizagem (Bernardino et al., 2012).
Alguns estudos com adultos, crianças e adolescentes/jovens, mostram claros benefícios da biblioterapia sobretudo face a perturbações da ansiedade (Febbraro, 2005; Wooton et al., 2018), do humor (Liu et al., 2009; Moldovan et al., 2013; Scogin et al. 2014; Brière et al., 2016) e do comportamento alimentar (Costa e Melnik, 2016) e, entre outras, situações de luto e abuso sexual.
Para Louis Gottschalk (s.d., referenciado por Monteiro, 2004), constituem objetivos da biblioterapia: ajudar o utente a entender melhor as suas reações psicológicas e físicas de frustração e conflito; ajuda-lo a conversar sobre os seus problemas; favorecer a diminuição do conflito pelo aumento da autoestima ao perceber que o seu problema já foi vivido por outros; prestar-lhe auxílio na análise do seu comportamento; proporcionar experiência ao leitor sem que o mesmo passe pelos perigos reais; reforçar padrões culturais e sociais aceitáveis; estimular a imaginação. Todas estas finalidades podem ser alvo das estratégias dos profissionais de saúde mental, através da leitura orientada ou da escrita terapêutica, estruturada ou aberta (escrita criativa).
O uso da biblioterapia na área da saúde mental e psiquiátrica, potencia o processo de tomada de consciência de “si” e o reconhecimento singular da dimensão do “outro”, ajudando a pessoa a encontrar as ferramentas necessárias para desenvolver estratégias de ajustamento mais eficazes que promovam a resiliência e a readaptação funcional (Gonçalves et al., 2018), com baixos custos e com proveitos, quer para as pessoas com doença mental, quer para os seus cuidadores/ familiares.
A terapia pela leitura, enquanto mediador da expressão de emoções e de interação com os outros, resulta num melhor ajustamento à vida e, por conseguinte, num melhor ajustamento ao processo de saúde/doença.
Bibliografia:
Azevedo, F.F.; Oliveira, K.H. (2016). Práticas e discursos académicos sobre biblioterapia desenvolvidas em Portugal. Álabe 14, 11p, DOI: 10.15645/Alabe2016.14.6
Bernardino, M.C.R.; Elliott, A.G.; Nrto, M.L.R. (2012). Biblioterapia com Crianças com Câncer. Informação & Informação Londrina, 17 (3), 198 – 210, DOI: 10.5433/1981- 8920.2012v17n3p198
Brière, F.N.; Rhode, P.; Stice, E.; Morizot, J. (2016). Group-based symptom trajectories in indicated prevention of adolescente depression. Depression and anxiety 33, 444–451, DOI: https://doi.org/10.1002/da.22440
Costa, M.B.; Melnik, T. (2016). Efetividade de intervenções psicossociais em transtornos alimentares: um panorama das revisões sistemáticas Cochrane. Einstein,14(2), 235-77, DOI: 10.1590/S1679-45082016RW312
Febbraro, G.A.R. (2005). An Investigation Into the Effectiveness of Bibliotherapy and Minimal Contact Interventions in the Treatment of Panic Attacks. Journal of Clinical Psychology, 61(6), 763–779, DOI: 10.1002/jclp.20097
Gonçalves, J.P.; Gomes, R.M.T.; Moura, S.M.C.; Valentim, O.S. (2018). Eficácia da biblioterapia como intervenção de enfermagem no cuidar da pessoa com doença mental-Revisão integrativa da literatura. XI Encontro Luso Brasileiro de Enfermagem. O Cuidado de Enfermagem - História e Inovação. Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, Portugal
Liu, E.T.; Chen, W; Li, Y.; Wang, C.H.; Mok, T.J.; Huang, H.S. (2009) Exploring the Efficacy of Cognitive Bibliotherapy and a Potential Mechanism of Change in the Treatment of Depressive Symptoms Among the Chinese: A Randomized Controlled Trial. Cognitive Therapy and Research, 33, 449–461, DOI 10.1007/s10608-008-9228-4
Moldovan, R; Cobeanu, O.; David D. (2013) Cognitive Bibliotherapy for Mild Depressive Symptomatology: Randomized Clinical Trial of Efficacy and Mechanisms of Change. Clinical Psychology and Psychotherapy,20, 482–493. DOI: 10.1002/cpp.1814
Monteiro, A.P. (2004) Biblioterapia como forma de Intervenção de Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica Hospitalidáde, 264, 13-17. Recuperado de https://www.researchgate.net/publication/257879900
Scogin, F., Fairchild, K. J.,Yon, A.; Welsh, D.L.; Presnell, A. (2014). Cognitive bibliotherapy and memory training for older adults with depressive symptoms. Aging & Mental Health, 18 (5), 554– 560, DOI: http://dx.doi.org/10.1080/13607863.2013.825898
Wootton, B.M.; Steinman, S.A.; CzerniaWski, A.; Norris,K.; Baptie, G.D.; Tolin, D.F. (2018). An Evaluation of the Effectiveness of a Transdiagnostic Bibliotherapy Program for Anxiety and Related Disorders: Results From Two Studies Using a Benchmarking Approach. Cognitive Therapy and Research, 42, 565–580, DOI: https://doi.org/10.1007/s10608-018-9921-x