25/10/2025
O MEDO QUE MORA ENTRE PAIS E FILHOS
Há medos que se escondem debaixo da pele. Não fazem barulho, não deixam marcas visíveis, não têm data de nascimento. Crescem devagar, como a ferrugem nas esquinas da alma. Assim é o medo de alguns pais em relação aos filhos: não chega de repente — instala-se num intervalo pequeno, numa conversa adiada, num olhar que já não encontra resposta. E quando se percebe que ele está ali… já ficou casa.
O país acordou, há poucos dias, para uma notícia que não se esquece facilmente: um filho que matou a própria mãe. Essas palavras — “filho” e “mãe” — juntas, nesse contexto, têm um peso que nenhum corpo consegue carregar sem se partir um pouco por dentro. São duas palavras que nasceram para ser abrigo, e não ferida. E, no entanto, aqui estamos: com a ferida aberta, a sangrar.
Mas mais assustador do que o crime em si é a sombra que ele projeta: um medo difuso, feito de silêncios e distâncias, que lentamente se instala nas famílias. Pais que começam a desconfiar dos filhos. Não daquela desconfiança que nasce de um segredo adolescente inofensivo — mas de uma outra, mais funda e mais sombria: a desconfiança de já não os reconhecerem.
Pergunta-me um paciente entre a vergonha e a urgência de ter uma resposta que alivie " viu o que deu na TV , certo? Daquele filho que matou a mãe...acha que pode acontecer a qualquer um de nós? Não sei se a minha filha poderia fazê-lo". Imagino, que por estes dias, outros pais sejam assombrados por esta dúvida que dilacera e os afasta em vez de aproximar, dos filhos.
Há pais que têm medo de falar, com receio de que cada palavra possa incendiar um terreno já seco. Há filhos que respondem com silêncio — não porque não sintam, mas porque não sabem como traduzir o que sentem. E assim, aos poucos, aquilo que era casa transforma-se em corredor. Passa-se um pelo outro sem se tocar. Dorme-se no mesmo teto, mas não se habita o mesmo lugar.
O medo não chega com gritos. O medo chega com portas entreabertas, com jantares silenciosos, com palavras contadas. O medo chega com pais que não perguntam mais, e com filhos que já não dizem nada. E quando o medo se senta à mesa, o amor tem cada vez menos lugar.
Eu sei — amar um filho pode ser um território difícil. Há adolescências que são tempestades, há juventudes que ardem sem pedir licença, há emoções que não têm tradução. Mas, por mais intensa que seja a tormenta, o amor não pode ser substituído pelo medo. Porque o medo não educa. Não aproxima. Não protege. O medo levanta muros — e os muros, por mais altos que sejam, não impedem a dor. Apenas isolam.
Amar um filho é, muitas vezes, ficar quando tudo convida a recuar. É ouvir quando tudo fere. É abrir os braços quando o instinto diz para se proteger. Amar um filho é atravessar zonas de sombra com a convicção teimosa de que, do outro lado, há uma luz que vale a pena.
Os filhos não precisam de pais perfeitos. Ninguém precisa. Precisam de pais que olhem com os olhos limpos, que escutem sem mapas prontos, que perguntem sem exigir respostas definitivas. Precisam de pais que resistam ao medo — não por heroísmo, mas por amor. Porque quando os pais têm medo dos filhos, a intimidade morre um pouco todos os dias. E uma relação sem intimidade é um deserto disfarçado de lar.
Esta tragédia — como todas as tragédias — grita para além de si mesma. Não nos diz apenas que alguém morreu. Diz-nos que precisamos reaprender a estar juntos. Que precisamos escutar antes de julgar. Que precisamos criar lares onde os silêncios não se tornem muros.
Os filhos crescem, mudam, contestam — é assim que deve ser. Mas, no meio desse crescimento, o amor precisa de permanecer como o chão onde se pousa os pés.
Não há relação humana mais pura do que aquela entre pais e filhos quando há verdade. Quando há abraço. Quando há escuta. Quando há espaço para errar e para perdoar. Quando não se tem medo de estar frente a frente e dizer: “Eu estou aqui. Mesmo quando não entendo tudo. Mesmo quando dói.”
O medo seca tudo o que toca. O amor, pelo contrário, é água. Infiltra-se nas frestas, renasce no meio dos escombros, insiste. O medo é ausência, e a ausência mata devagar.
Mas o amor — mesmo ferido, mesmo exausto — tem essa capacidade de ressuscitar a esperança.
Que esta dor coletiva não sirva para alimentar desconfianças, mas para acender conversas. Para que os pais possam voltar a olhar os filhos não como ameaças, mas como filhos. Para que os filhos sintam que podem voltar para casa — não para uma casa de tijolos, mas para uma casa feita de braços e palavras verdadeiras.
Porque, no fim, o que salva não são as grades nem os medos.
O que salva é — sempre — o amor que ousa ficar.
(Foto tirada da NET)