21/05/2023
Entrevista à revista "Saúde & Lar", novembro 2007, número 721.......
Carlos M. Lopes Pires é Doutor em Psicologia Clínica da Saúde pela Universidade de Coimbra
e Professor de Psicofarmacologia da Faculdade de Psicologia da Universidade de Coimbra,
sendo coordenador do Research Group on Psychological Processes related to Suggestion, Hypnosis, Placebo and Psychopharmacs. A par da sua actividade científ**a e académica, é psicólogo clínico em prática privada. Autor do livro A Depressão não é uma doença (Editorial Diferença, 2003), concede esta entrevista à Saúde & Lar, explanando o seu pensamento e a sua experiência relativamente à Depressão. Uma entrevista fundamentada e aberta, que conduz a uma séria reflexão.
Saúde & Lar: Se a depressão não é uma doença, o que é?
Dr. Carlos M. Lopes Pires: A depressão é um distúrbio (perturbação, desordem, transtorno).
A Associação Psiquiátrica Americana adoptou, há vários anos, a designação perturbação. É que a palavra “doença” remete, na cultura dominante, para o chamado “modelo médico de
doença”. Segundo este modelo, todos os transtornos psicológicos são resultantes de anomalias/causas biológicas e, naturalmente, preconiza que o seu tratamento se faça recorrendo a dr**as que, supostamente, corrigem essas anomalias. É uma visão teoricamente reducionista, cientif**amente desajustada e clinicamente nociva. Do ponto de vista científico (que não deve confundir--se com o marketing farmacêutico) é ponto assente que, até agora, não foram encontradas quaisquer causas biológicas para a depressão. Nem,
obviamente, existe qualquer “correcção biológica” por parte do fármaco. Note-se que a depressão não é uma “coisa”, uma entidade, como é, por exemplo, uma úlcera. É uma síndroma, isto é, um conjunto de sintomas organizados segundo um padrão mais ou menos estável e relativamente previsível. Mas tal não autoriza que se deduza a existência de uma anomalia orgânica na sua origem. Comparar a depressão à diabetes, como frequentemente se faz, é pois um disparate, que só a leviandade ou o desconhecimento científico permitem.
Frequentemente, talvez por deficiente formação científ**a, alguns profissionais confundem doença com sofrimento. Ora, existem doenças que não se acompanham de sofrimento e existem perturbações e circunstâncias da vida que provocam um sofrimento dilacerante. Finalmente, deverá salientar-se que a depressão faz parte de um conjunto de distúrbios designados distúrbios de humor, querendo isto dizer que são perturbações em que existem
mudanças, mais ou menos acentuadas, nos estados de alegria e tristeza, bem como na motivação para realizar a maior parte das coisas da vida e na energia necessária para as fazer.
S&L: Qual é a origem e quais são os sintomas da chamada depressão?
C.M.L.P.: Se quisermos traçar as origens daquilo a que chamamos depressão, deveremos considerar algumas características que, em geral, nos permitem compreender o percurso de alguém que se deprime. Poderemos, de forma simples, considerá-las em três contextos. No contexto mais imediato, consideraremos as circunstâncias, isto é, os acontecimentos que têm efeito depressor, aumentam a probabilidade de uma pessoa se retrair, tornar-se menos activa, mais desanimada, mais triste. Exemplos de tais circunstâncias são a perda, seja ela emocional, física, ou moral. Por exemplo, a humilhação constitui uma possível perda de valor
pessoal. Uma desvalorização do que se considera ser o valor de alguém enquanto indivíduo.
Naturalmente que a diminuição de auto-estima pode ser uma consequência de tal circunstância. A repetição de fracassos, qualquer que seja a sua natureza, conduz frequentemente à desesperança, isto é, a que uma pessoa acredite que nada do que faça irá dar certo.
Claro que as circunstâncias por si só, em geral, não chegam para deprimir alguém. Com efeito, muitas das pessoas que se deprimem têm características pessoais que as tornam mais vulneráveis àquelas circunstâncias. Por exemplo, muitas delas são já, antes de serem confrontadas com os tais acontecimentos, pessoas pessimistas, quer dizer, pessoas que tendem a esperar maus resultados das suas acções. Muitas delas são também muito
ansiosas, costumando antecipar os acontecimentos futuros como desastrosos e perigosos.
Acrescente-se, igualmente, ser comum a existência de dificuldades interpessoais, levando a que muitas delas tenham um limitado número de amigos e, consequentemente, um limitado leque de pessoas às quais possam recorrer em momentos de aflição, bem como um reduzido número de actividades de lazer possíveis que permitam equilibrar com emoções positivas as emoções negativas com que estão a defrontar-se. Estas características pessoais,
naturalmente, resultarão da conjugação complexa entre particularidades biológicas hereditárias e particularidades associadas à educação e a experiências prévias de vida.
Por outro lado, há ainda que considerar o modo como as pessoas respondem às circunstâncias adversas. As pessoas que entram no percurso depressivo tendem a ter um padrão disfuncional de lidar com tais adversidades. Por exemplo, quando se sentem “em
baixo” refugiam-se mais em casa, diminuem os contactos interpessoais, as actividades geradoras de prazer. Portanto, agravam ainda mais o seu mal-estar, conduzindo rapidamente a condições depressivas.
Estes são os critérios estabelecidos para o diagnóstico adequado da depressão. Como é fácil de concluir, pelo que observamos à nossa volta, com alguma frequência o diagnóstico de
depressão é feito com base apenas em um ou dois daqueles sintomas.
S&L: Quais são as diferenças entre depressão e tristeza?
C.M.L.P.: Não deve confundir-se tristeza com depressão, ou desmotivação, ou falta de energia. Naturalmente que estas características poderão fazer parte da depressão, mas cada
uma delas, por si, não chega. O mesmo se diga de estados disfóricos (mal-estar de género depressivo) pontuais que, embora tendo características da depressão, surgem em resposta a
circunstâncias da vida perante as quais é natural a maioria das pessoas sentir-se assim durante algum tempo. Por exemplo, quando perdemos alguém, que nos é querido/a, f**amos
tristes, melancólicos/as, sem vontade para levar por diante coisas habituais, como comer ou trabalhar. Note-se que é frequente encontrar-se profissionais que para acentuar a gravidade
da depressão contrapõem esta à tristeza, mas que, depois, na sua prática clínica, diagnosticam como deprimidas pessoas que estão, simplesmente, a reagir com tristeza a uma circunstância recente na sua vida. Portanto, resumidamente, a tristeza será um sintoma
possível de depressão (que inclui outros sintomas).
S&L: Em que é que as abordagens psiquiátrica e psicológica divergem quanto ao modo de encarar a depressão?
C.M.L.P.: Nem todos os psiquiatras preconizam os pressupostos da chamada “psiquiatria biológica” e nem todos os psicólogos comungam dos pressupostos do chamado “modelo
biopsicossocial” (existem mesmo psiquiatras dos mais conceituados mundialmente que estão entre os clínicos e investigadores mais importantes deste último modelo, como por exemplo, A. Beck, no campo da depressão). A mais importante diferença entre estas duas concepções acerca dos distúrbios psicológicos
estará em que na primeira se preconiza a existência de uma causalidade biológica, justamente por se basear no modelo médico de doença (de que falei atrás), e na segunda se preconiza que os nossos pensamentos e as nossas acções determinam, igualmente, os nossos estados emocionais patológicos. Daqui resulta uma consequência imediata: no primeiro caso, a pessoa f**a nas mãos do médico e dos fármacos, no segundo caso a pessoa é “treinada” no sentido de mudar os seus pensamentos disfuncionais e acções inadequadas. Ao fazê-lo, a pessoa desenvolve as suas competências de auto-controlo. Liberta-se para a vida. O primeiro modelo - poderemos ainda dizer – é pessimista, o segundo é optimista. Acredita na mudança.
S&L: O que quer dizer, no seu livro, com a expressão “Quando o tratamento se torna um tormento”? Que espiral, começada no tratamento com fármacos, pode ter lugar?
C.M.L.P.: Basta consultar a bula que acompanha estes fármacos para se constatar que entre as “reacções adversas” estão alterações muito preocupantes. Não é por acaso que cerca de 30% das pessoas que entram nos ensaios clínicos com antidepressivos desistem… Existe uma quantidade desconhecida de pessoas que reage muito mal a estas dr**as (eventualmente mais ansiedade, agitação, insónias, ideação suicida, acatísia*, disquinésia*).
Em consequência, estas pessoas são medicadas com outras dr**as, iniciando-se o desenvolvimento de um conjunto sério de dificuldades pessoais, emocionais, profissionais. É minha convicção que, em geral, uma pessoa medicada com antidepressivos, que não
melhora da depressão num período entre três e seis meses, dificilmente irá melhorar. Passará a ser chamada “depressiva crónica”.
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* N.d.R. 1. Acatísia: Desordem emocional em que o indivíduo se apresenta inquieto e ansioso, incapaz de se sentar.
2. Disquinésia: Distúrbio de movimento caracterizado pelo aumento da actividade motora.
S&L: Afinal... “não existem antidepressivos”?
C.M.L.P.: O que pretendi dizer é que não existe nada de intrinsecamente específico nestes fármacos no que concerne à depressão. Nos países orientais/asiáticos os antidepressivos
tiveram pouca implantação. O Prozac, segundo o Prof. David Healy1, foi um fracasso no Japão. Nestes países as pessoas são prescritas mais com benzodiazepinas. Mesmo na Alemanha, o principal psicotrópico usado pelos psiquiatras no manuseamento da depressão é o Kava-Kava (um produto herbal). Os antidepressivos, de que falamos, são, essencialmente,
um caso ocidental (países norte-americanos e Europa). Estudos recentes, de que me permito destacar a meta-análise a todos os ensaios clínicos de antidepressivos aprovados pela FDA
(equivalente nos Estados Unidos da América à Infarmed), entre 1987 e 1999, realizada pelo Prof. Irving Kirsch e colaboradores2, sugere que os antidepressivos são, afinal, pouco mais
do que placebos activos…
Há outra razão para questionar esse nome: actualmente os antidepressivos são igualmente a primeira escolha, farmacológica, para os distúrbios de ansiedade (incluindo medos e fobias).
A designação “antidepressivo” é claramente um recurso do marketing e, igualmente, uma necessidade de corresponder às actuais exigências das entidades reguladoras de dr**as, que
impõem indicações terapêuticas por diferentes categorias de diagnóstico.
Finalmente, para fármacos ditos antidepressivos, a sua eficácia clínica deixa muito a desejar: num período entre seis e doze meses andará entre os 50% e os 65%, mas doze meses após
o final do tratamento, cerca de 34% das pessoas tratadas recaem…
S&L: Porque diz não acreditar que algum dia se virá a descobrir uma “droga antidepressiva”?
C.M.L.P.: Os distúrbios psicológicos não são moléstias. Talvez sejam mais respostas complexas às circunstâncias da vida. Na verdade, hoje pensa-se que estas emoções disfuncionais, onde podemos incluir a depressão, fazem parte de sofisticados, ainda que
primitivos, sistemas de alarme. São modos de lidar com a nossa existência. É certo que são modos em que alguma coisa correu mal, em que eventualmente a pessoa interpretou disfuncionalmente alguma coisa, mas, mesmo assim, existe uma base saudável na sua
origem. Sendo assim, a invenção de um fármaco que produzisse alterações nestas emoções, fora das circunstâncias a que estão ligadas, seria uma invenção, acima de tudo, impossível.
Implicaria que as pessoas pudessem viver desligadas da sua vida. Existe uma outra razão, esta de natureza, digamos, teórica. A depressão, enquanto conjunto organizado de características (os sintomas) não é redutível a neurotransmissores ou a neuropeptídeos. É como o pensamento: por vezes diz-se que, quando alguém está a pensar nisto ou naquilo, se activa uma determinada parte do cérebro, tirando-se a conclusão de que é aí que “mora” o pensamento. Ora pensar é um acontecimento global e integrador, não apenas da química cerebral, mas também da cultura, das experiências pessoais, entre outras. Imagine,
igualmente, só o ridículo de se imaginar que será criada uma droga capaz de provocar esperança… E, no entanto, a depressão está muito ligada à (des)esperança. De qualquer modo, quando o Prozac foi lançado (meados da década de 80 do século
passado), ele foi promovido, justamente, com essa ideia, a de que teria sido inventada uma droga capaz de tornar as pessoas felizes, mesmo tendo motivos para o inverso. Infelizmente,
a história mostrou que este fármaco provocou infelicidade num número de pessoas que, provavelmente, nunca poderá ser contabilizado.Outra coisa diferente é existirem fármacos que possam ser utilizados, dentro de um tratamento mais abrangente, para ajudar as pessoas. Com esta perspectiva estou completamente de acordo.
S&L: Que tipo de terapias aconselha a alguém que pense necessitar de ajuda por se sentir deprimido?
C.M.L.P.: Segundo o National Institute for Health and Clinical Excellence (NICE), do Reino Unido 4, o tratamento de primeira linha para os transtornos depressivos (e sejam eles ligeiros, moderados ou severos) deverá ser psicológico. E refere os três tratamentos
psicológicos empiricamente validados para a depressão: comportamental, cognitivo e interpessoal (no caso de crianças e adolescentes, acrescenta uma modalidade terapêutica com uma componente de natureza familiar).
S&L: O seu livro define depressão como “um modo de relacionamento com a vida”. Que relacionamento alternativo propõe?
C.M.L.P.: Bom, em rigor, esta pergunta remete para diversos aspectos que fui mencionando ao longo da entrevista, mas que posso, agora, sintetizar de uma maneira mais concreta. Em
primeiro lugar, trata-se de um relacionamento disfuncional. Quer isto dizer que a pessoa se muniu de um conjunto de acções, atitudes, emoções e pensamentos que perturbam o que
poderemos considerar um vivência satisfatória. Em segundo lugar, as pesquisas e a prática clínica têm mostrado que é este relacionamento que determina, a cada momento e, por
conseguinte, no futuro, o desenvolvimento e manutenção dos chamados estados depressivos. É igualmente disfuncional por não estar de acordo com os factos (definidos estes segundo um critério de maioria). Por exemplo, uma pessoa sentir que ninguém gosta
dela por ter havido uma pessoa que lhe comunicou “não gosto de ti”. A. Beck identificou uma série de distorções cognitivas que caracterizam esta disfuncionalidade. E, no conjunto destas
distorções, compreendeu-se que as pessoas deprimidas tendem a manifestar três níveis cognitivos de funcionamento altamente disfuncionais: 1. A Tríade negativa (visão pessimista
sobre si, sobre a vida e sobre o futuro); 2. Esquemas ou crenças negativos (por exemplo, a crença de que se tem de ser perfeito); 3. Distorções negativas (por exemplo, tendo uma tarefa corrido mal, tirar-se a conclusão de que tudo corre mal. Que a vida é um fracasso).
Concluindo: estas características funcionam como uma espécie de óculos que distorcem tudo o que uma certa pessoa vê. O tratamento psicológico consiste, justamente, em utilizar uma
série de procedimentos que irão permitir corrigir tais distorções.
Claro que um relacionamento alternativo consiste, caso a pessoa se encontre, realmente, já deprimida, na implementação do protocolo terapêutico a que fiz referência. No caso de uma pessoa não estar, ainda, deprimida de modo que a obrigue a solicitar ajuda profissional, deverá inverter o conjunto de comportamentos e acções em que se envolveu. Nomeadamente, deverá procurar aumentar os seus níveis de actividade (exercício físico pelo
menos três vezes por semana, e pelo menos 20 minutos de cada vez, em ritmo aeróbico; actividades de lazer e distracção); deverá procurar o convívio com pessoas de que gosta, frequentar locais públicos (para combater o sentimento de isolamento), combater
activamente os pensamentos pessimistas (eventualmente escrevendo uns e outros, o que permite realizar mais adequadamente este trabalho de correcção mental). Estas são algumas “dicas” que, de qualquer maneira, o próprio tratamento psicológico utiliza, se bem que de modo mais exigente, pormenorizado e complexo.
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Notas
1 Healy, D. (2002). The Creation of Psychopharmacology. London: Harvard University Press.
2 Kirsch, I., Moore, T. J., Scoboria, A., & Nicholls, S.S. (2002a). The Emperor’s new drugs:
An analysis of antidepressant medication data submitted to the U.S. Food and Drug
Administration. Prevention and Treatment, 5, Article 23. [On Line]. Available:
http://www.journals.apa.org/prevention/volume5/ pre0050023a.html. (1 October, 2002).
3 Estes dados podem ser consultados num dos manuais de psicofarmacologia mais fundamentados, escrito por um influente psiquiatra norte-americano, o Prof. Stephen Stahl:
Stahl, S. M. (2001). Essential Psychopharmacology: Neuroscientific Basis and Practical Applications. Cambridge University Press.
4 Quem o desejar pode consultar informações sobre este e outros assuntos (ansiedade, fobias, entre outros) no website do NICE (www.nice.org.uk)