19/11/2025
Retalhos da Vida de um médico, de Saúde Pública
[Saúde (do) Pública(o) (45), no Diário dos Açores de 19.11.2025]
🚨O tema da semana: “Relembrar”: o “One Health” e a Visão Integrada da Saúde Pública
A Saúde Pública é uma Ciência, e uma Arte, que transcende fronteiras disciplinares, e que exige uma abordagem holística, para enfrentar os desafios contemporâneos.
O “One Health” realça a ligação entre a saúde humana, animal e ambiental, e ganhou relevância num contexto global marcado por ameaças emergentes, como as pandemias e as alterações climáticas.
É um paradigma que reconhece a interdependência entre a saúde das pessoas, dos animais e o ambiente.
Desenvolvido pela Organização Mundial de Saúde (OMS), pela Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) e pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), este conceito surgiu da necessidade de responder a problemas complexos, que não podem ser resolvidos isoladamente.
Por exemplo, as doenças zoonóticas (que se transmitem entre animais e humanos, como a gripe aviária ou a COVID-19) ilustram como um desequilíbrio ambiental pode afectar directamente a Saúde Pública.
O leitor imagine o One Health como um ecossistema ligado: o que afecta os animais ou o ambiente pode repercutir-se na saúde humana.
Na prática, isto implica a colaboração entre médicos humanos, médicos veterinários, e outros especialistas.
Em contextos como os Açores, onde a agricultura, o turismo e a proximidade com o mar moldam a vida quotidiana, esta abordagem é particularmente pertinente.
Pode envolver vigilância sanitária em explorações agrícolas para prevenir contaminações alimentares, ou a monitorização ambiental para mitigar impactos dos poluentes na saúde comunitária.
O objectivo é promover acções preventivas que salvaguardem o bem-estar colectivo, reduzindo riscos e fomentando a sustentabilidade.
Este conceito não é novo; as suas bases remontam a observações históricas sobre a transmissão de doenças.
No entanto, ganhou formalização no início do século XXI, devido às crises globais.
Hoje, o One Health faz parte das políticas públicas, como estratégias de controlo de antibióticos resistentes ou planos de resposta a emergências sanitárias.
Veja-se isto como uma rede de protecção: ao cuidar do ambiente e dos animais, estamos a investir na nossa própria saúde a longo prazo.
Há quase 20 anos, em 2008, um grupo de profissionais (e visionários), na Lagoa, iniciou acções que, retrospectivamente, incorporavam o espírito do “One Health”.
Na altura, como delegado de saúde do concelho da Lagoa e da Ilha de São Miguel, reuni com um jovem presidente do Núcleo Empresarial da Lagoa (NELAG), o Dr. Ricardo Martins Mota, e com um jovem veterinário, o Dr. Miguel Balacó Amaral.
Na verdade éramos todos muito jovens, e cheios de Esperança e Vontade.
Desta colaboração surgiu a ideia de implementar acções de vigilância sanitária, em múltiplos espaços, mas em particular nos estabelecimentos de restauração e bebidas da Lagoa.
Estas iniciativas não se limitavam a inspecções rotineiras; envolviam uma abordagem integrada que considerava a saúde humana, a higiene animal e o impacto ambiental.
Por exemplo, avaliávamos não apenas as condições de armazenamento dos alimentos de origem animal, mas também os riscos de contaminação cruzada, que poderiam afectar tanto os consumidores como o ecossistema local.
E ainda tínhamos um cuidado especial com o consumo tabágico, nestes espaços.
O resultado foi uma transformação signif**ativa na Saúde Pública do concelho (uma cultura de responsabilidade partilhada entre empresários, veterinário e autoridade de saúde), reconhecida pela Assembleia Municipal da Lagoa, em Abril de 2010.
Esta experiência demonstrou, na prática, como a colaboração interdisciplinar pode gerar impactos duradouros.
Sem o formalismo do termo “One Health” – que ainda não fora adoptado à época –, aplicamos os seus princípios fundamentais: reconhecer que a saúde não está compartimentalizada, mas interligada.
Hoje, ao reflectir sobre esses anos (2008 a 2010), é evidente que tais acções anteciparam os debates actuais, provando que visões inovadoras podem emergir de contextos locais.
Na mesma altura, envolvi-me activamente na adesão dos concelhos da Ilha de São Miguel à “Rede Portuguesa de Cidades Saudáveis”, e consegui promover a adesão de Ponta Delgada, Ribeira Grande, Lagoa e Povoação a esta Rede, o que ampliou esta visão integrada.
Esta Rede, afiliada da iniciativa da OMS de “Cidades Saudáveis”, promove o planeamento urbano focado na saúde, incorporando aspectos ambientais, sociais e económicos.
Nos Açores isto signif**a iniciativas relacionadas directamente com o “One Health”, como projectos de promoção de espaços verdes ou campanhas de educação sobre alimentação sustentável, por ex..
A adesão destes municípios aconteceu em 2009, reflectindo um compromisso colectivo com a saúde integrada.
Ponta Delgada foi a pioneira; na iniciativa “Ponta Delgada Cidade Saudável” (28 e 29 de Maio de 2009), o município assinou formalmente a “Declaração de Compromisso com a Rede”, destacando acções que integravam saúde humana e ambiental, como a monitorização dos espaços urbanos.
Esta adesão catalisou a implementação de planos que promovem a mobilidade sustentável e a preservação dos ecossistemas costeiros, alinhando-se com o espírito do “One Health”.
Seguiram-se as adesões da Povoação, Ribeira Grande e Lagoa, formalizadas em Junho e Julho de 2009.
O processo culminou com a assinatura das declarações durante o colóquio “Autarquias e Saúde”, realizado nas Furnas, Povoação (26 de Junho), e a aprovação pela Assembleia Intermunicipal (19 de Julho).
Na Povoação, um concelho rural com forte ligação à Natureza, a vigilância ambiental, como o controlo de pragas em áreas agrícolas sem recurso excessivo a químicos, protegendo assim a saúde humana, animal e o equilíbrio ecológico, é crucial. Embora a Povoação tenha posteriormente saído da Rede (devido a decisões políticas) o seu envolvimento inicial demonstrou o potencial de abordagens integradas, neste contexto.
Na Ribeira Grande, a adesão destacou projectos relacionados com os recursos hídricos, o que incorpora os princípios de “One Health” ao ligar a saúde pública com a conservação de habitats naturais.
Por fim, na Lagoa, já familiarizada com várias outras ações de Saúde Pública em 2008 e 2009, a adesão acabou por ser uma extensão natural dessas iniciativas. O foco, à época, foi em campanhas de educação comunitária, por exemplo sobre higiene alimentar e sustentabilidade.
Estas acções colectivas, neste 4 municípios, não foram uma mera formalidade:
representaram um compromisso com políticas que veem a saúde como um bem colectivo, influenciado pelo ambiente e pelas interações humano-animal.
Retrospectivamente, todas estas acções são o cerne do One Health:
uma saúde única, onde o bem-estar humano depende da harmonia com o ambiente natural e animal.
Nos Açores, com a sua biodiversidade única, estas iniciativas foram em larga medida precursoras, demonstrando que as abordagens locais podem alinhar-se com conceitos globais emergentes.
Todo este trabalho realizado - há quase 2 décadas - já incorporava o espírito do “One Health”, provando a sua relevância intemporal.
Discutir o “One Health” é importante para disseminar o conhecimento e fomentar diálogos.
No entanto, o verdadeiro valor reside nos resultados tangíveis que resultam das discussões.
São necessárias acções concretas – planos de vigilância integrada, políticas de sustentabilidade, parcerias interdisciplinares – e não apenas registos fotográficos.
Num espírito de nobreza e compromisso com o Bem Público, recordo que a Saúde Pública avança através de trabalho persistente e de colaboração, e não de aparências.
Que se honre o legado de visões integradas, transformando conceitos em realidades que beneficiem as comunidades.
Só isto interessa.
Avaliações pessoais, a serem feitas, que se façam no mínimo duas décadas depois, em jeito de memórias, de um qualquer aprendiz de Fernando Namora.
🎖️A homenagem da semana: aos parceiros visionários
Permita-me, caro leitor, esta semana prestar homenagem aos meus parceiros daquela época: o Dr. Miguel Balacó Amaral e o Dr. Ricardo Martins Mota.
A sua dedicação e visão foram fundamentais para as transformações conseguidas, e que aqui referi esta semana.
Reencontrei-os na defesa da Saúde Pública quando, em Dezembro de 2020, a Câmara Municipal da Lagoa criou o Gabinete Municipal de Crise COVID-19.
Este gabinete, que integrou elementos do executivo camarário e outros especialistas, representou uma resposta coordenada à pandemia, um eco longínquo do espírito de colaboração que nos uniu anos antes.
O seu envolvimento reforçou a importância de parcerias duradouras na protecção da comunidade, provando que o compromisso com a Saúde Pública transcende o tempo.
Porque “cada história é um retalho”, que estas memórias nos inspirem sempre, a nós e a todos, a continuarmos a construir um futuro mais saudável, integrado e sustentável.