
10/07/2025
Partilhamos o artigo de opinião da Dra. Patrícia António, Directora Associada e colaboradora do Espaço N - Neurociências, Saúde e Desenvolvimento de Lisboa, publicado na edição de hoje, 10 de Julho de 2025 do Jornal de Leiria, intitulado - "Da profundidade ao pragmatismo: onde a humanidade do terapeuta e da pessoa se encontram."
Texto integral aqui:
"No passado dia 17 de junho, participei no I Congresso ICAD, na mesa “Diálogos em Psicoterapia: da profundidade ao pragmatismo” — um tema que me acompanha desde sempre. A minha prática como psicoterapeuta psicodinâmica tem sido atravessada por contextos diversos e pelas histórias de pessoas marcadas por dor, trauma, desorganização e sucessivas tentativas de se reorganizarem por dentro. Em 2019, fiz em Lisboa com o colega Andrew Tatarsky a formação na abordagem da Psicoterapia Integrativa de Redução de Danos. Essa experiência foi profundamente transformadora. Acrescentou sentido ao meu trabalho e ao modo como me posiciono na intervenção nos Comportamentos Aditivos e as Dependências (CAD). Aprendi a pensar melhor o sofrimento do outro e o meu papel como terapeuta. Com o tempo, tornei-me mais humana, mais atenta, mais segura do valor de estabelecer uma relação que acolhe a pessoa onde ela está, com as suas necessidades e objectivos. Uma relação que dá espaço a dores escondidas, que durante anos só puderam ser anestesiadas. Quantas vezes ouvimos: “Dra., se eu parar, dói!”. E sabemos o que isso quer dizer. A conduta aditiva é, antes de tudo, uma defesa contra um sofrimento insuportável — uma tentativa de induzir estados emocionais que não puderam emergir naturalmente, devido a interrupções ou experiências adversas precoces no desenvolvimento. Na sua origem, podemos dizer que responde a uma necessidade legítima e humana. Por isso, não nos revemos em abordagens que impõem a abstinência como exigência inicial, sem antes oferecer um espaço relacional seguro, de escuta e significação. Importa perceber o sentido e os significados — conscientes e inconscientes — daquele consumo, naquele momento de vida da pessoa diante de nós. Escutar também o que não é dito: o tom de fundo, os silêncios, as pausas, as entrelinhas que ressoam em nós. Assim se constrói o encontro psicoterapêutico, onde sofrimento, ambivalência e desejo de mudança se entrelaçam fortemente e em combinações múltiplas. A maioria das pessoas diz-nos que consome: para obter prazer ou alívio da ansiedade; para sentir controlo, suportar perdas, atenuar memórias traumáticas; para anestesiar a dor da solidão, da rejeição, da negligência. No fundo, como refere Felicia Knoblock, trata-se de uma experiência que traduz um excesso: do insuportável e do intolerável da experiência relacional, do que é não estar lá ningém para dar colo, da presença de cuidadores alienados que desmentem ou adandonam, do que é ficar sozinho com as feridas que ficaram sem nome nem amparo. Um fardo emocional imenso que se carrega às costas e que conduz à dissociação, ao medo, ao bloqueio, à dificuldade extrema em confiar.Por isso, não nos surpreende que, no início do processo terapêutico, a pessoa resista a largar a sua “tábua de salvação”. O nosso papel não é retirar prematuramente esta defesa, mas construir um vínculo que devolva segurança, esperança e possibilidade de mudança. Ser psicoterapeuta, aqui, é escutar com ética e curiosidade, acolher o indizível e ser a primeira presença a ouvir o que antes não pôde ser dito. E a qualidade desta nova relação é um dos principais factores de sucesso terapêutico. E como também sabemos, este trabalho exige tempo — de escuta, de construção e de presença — um tempo hoje cada vez mais ameaçado pela urgência dos números e pela crise que vivemos nos cuidados de saúde mental. Neste contexto, defendemos que integrar a Abordagem Psicodinâmica com a Redução de Danos (RD) é uma resposta possível e, acima de tudo, profundamente humana. Uma prática que reconhece o valor de cada pequena mudança e que afirma a dignidade da pessoa tal como ela é. Romper com o estigma, respeitar a complexidade humana, acolher a ambivalência, sustentar o sofrimento e trabalhar com o possível — tudo isto faz parte da ética clínica que defendemos. Para isso, precisamos de equipas disponíveis para pensar, integrar e criar práticas inovadoras que incluam as pessoas nos seus contextos, e não apenas nos seus sintomas. Por trás do consumo, da apatia ou da destrutividade, encontramos histórias de dor antiga, onde o sintoma foi, muitas vezes, a única forma de sobreviver. É nesse “entre” — entre o escutar e o intervir, o interpretar e o conter — que se inscreve o nosso lugar. E é nesse espaço — entre a profundidade da escuta e o pragmatismo do cuidado — que a humanidade do terapeuta e da pessoa verdadeiramente se encontram. Trazer a RD para dentro das nossas estruturas especializadas em CAD é colocá-la ao serviço de todas as pessoas do SNS. E isso — apesar de não ser fácil — pode mesmo salvar vidas."