01/05/2025
Partilhamos o artigo de opinião da Dra. Patrícia António, Directora Associada e colaboradora do Espaço N - Neurociências, Saúde e Desenvolvimento de Lisboa, publicado na edição de hoje, 1 de Maio de 2025 do Jornal de Leiria, intitulado: "A hora em que não sabíamos nada uns dos outros"
Texto integral aqui:
"Em ano do seu 30º aniversário, a Companhia Olga Roriz presenteou-nos no CCB em Lisboa, com a remontagem da peça A hora em que não sabíamos nada uns dos outros, de Peter Handke, juntando o elenco fixo de sete bailarinos e um elenco exterior composto pelos bailarinos, que ao longo de 30 anos, fizeram parte da companhia e o resultado foi sublime e inquietante ao mesmo tempo. Nesta peça, inspirada na praça de Handke (1992), assistimos a uma praça que se torna palco de passagens, de silêncios, de gestos por vezes estranhos, por vezes familiares. Não há palavras, apenas música e corpos que se cruzam, aparecem, hesitam, desaparecem, como se cada um seguisse o seu percurso sem se dar verdadeiramente conta da presença do outro. Um desfile contínuo “do tempo sem tempo, de histórias sem histórias, de personagens sem discurso verbal, com passado e futuro indefinidos”, i.e., de almas vazias presentes e ausentes, onde a relação humana e a precaridade dos seus vínculos se apresentam. O que parece um atravessar de espaço na praça vai-se tornando, aos poucos, num espelho desconfortável do mundo em que vivemos - uma “peça metáfora” dos dias de hoje, onde ninguém parece verdadeiramente ligado a ninguém, nem à sua própria existência. Segundo as palavras de Olga Roriz escritas na folha de sala: “É uma peça intemporal na sua tradução da humanidade para o palco, porque está aberta ao aqui e agora de quem a leva à cena.”E isto questiona-nos sobre o que mudou e não mudou no mundo, interpela a nossa relação connosco próprios e com os outros, i.e., a nossa própria humanidade mas também o risco da nossa própria desumanização. Ao assistir à peça, vivenciei qualquer coisa do tempo que hoje habitamos: o vazio relacional, a solidão ruidosa, o deambular sem rumo, a deriva emocional. E lembrei-me de Sándor Ferenczi, psicanalista húngaro contemporâneo de Sigmund Freud e da importância da sua escuta clínica dedicada aos chamados “casos difíceis”. Ao contrário de outros autores da psicanálise clássica, Ferenczi ousou escutar o indizível. Deu voz ao que não se organiza em palavras mas que se inscreve no corpo, no gesto, na ausência. Deu voz às pessoas que, tal como as figuras desta praça, carregam histórias que não se contam em voz alta, por isso não precisam de interpretações mas de presença, de afecto, de uma escuta capaz de conter o caos e o silêncio. E, na verdade, não consegui deixar de pensar nas pessoas com quem trabalho diariamente. A actual “clínica do vazio”, como por vezes entre nós psicoterapeutas, lhes chamamos. Pessoas que nos chegam mas que não trazem narrativas construídas, nem sintomas claros – trazem antes um silêncio denso, uma ausência de enraizamento, uma sensação de instabilidade constante. Contam-nos que cresceram organizando-se em estruturas de personalidade frágeis, marcadas muitas vezes por negligências e traumas precoces, choros interrompidos e experiências fundadoras que não tiveram lugar ou nome e isto conta e dói! Exprimem algo que é fora da linguagem, algo que se oferece de forma crua à nossa sensibilidade e contenção. Como as figuras que atravessam a praça de Handke, são pessoas que nos surgem como corpos em trânsito, ora em urgência extrema, ora a deambular pela vida, muitas vezes suspensos e habitados por vazios e pela ausência de um Outro que os Escute. A praça como um espaço ampliado para as nossas intervenções, como por exemplo, a intervenção de redução de riscos e minimização de danos que fazemos com a pessoa onde a pessoa está, onde a nossa tarefa não é compreender, mas suportar e estar. E aqui reside um dos maiores desafios da clínica actual – oferecermos-nos eticamente como esse Outro disponível, seguro e contentor, para a escuta e para o acolhimento, testemunhando a existência da pessoa diante de nós. Saí da peça com uma sensação inquietante que não foi logo possível nomear. Talvez a peça nos convide justamente a parar. A ver. A escutar sem pressa para dentro e fora de nós, porque ao evidenciar o vazio, ela também o denuncia e, assim, abre espaço para o nosso desejo de um outro tipo de presença. Até quando vamos continuar a atravessar a praça sem nos tocar, sem nos vermos e sem nos olhar?"