04/12/2025
Partilhamos o artigo de opinião da Dra. Patrícia António, Directora Associada e colaboradora do N - Neurociências, Saúde e Desenvolvimento de Lisboa, publicado na edição de hoje, 04 de Dezembro de 2025 do Jornal de Leiria, intitulado - "O ambiente relacional e a arquitectura do Eu".
Texto integral aqui:
"No último mês, tive o privilégio de participar nas I Jornadas de Psicologia Clínica e da Saúde da Unidade Local de Saúde da Região de Leiria, dedicadas ao tema “A intergeracionalidade da Doença Mental”, não apenas enquanto profissional, mas também enquanto alguém que cresceu e viveu nesta cidade, onde mantenho grande parte da minha família e muitos amigos do coração. Um regresso a um lugar afectivo e simbólico. Talvez por isso, o tema que me endereçaram tenha feito tanto sentido: o impacto do ambiente relacional na formação da personalidade.
Na prática clínica, é algo que reencontramos todos os dias: o modo como cada um de nós se torna quem é depende desta palavra simples e complexa — ambiente. Não apenas o lugar onde nascemos ou o que nos rodeia, mas sobretudo a qualidade da presença humana que sustém, acolhe, traduz e, quando falha, pode deixar-nos à deriva. Tudo começa na relação. E, como lembrava Donald Winnicott (1993), psicanalista britânico, “não existe bebé sem mãe” — e, portanto, não existe vida psíquica fora de um ambiente relacional suficientemente bom. A nossa figura cuidadora é, no início, a primeira referência interior sobre a qual assenta toda a construção do nosso aparelho psíquico. Cabe-lhe o melhor possível, ir ao encontro das necessidades do seu bebé e nessas tentativas, encontrar o meio de satisfação das necessidades inerentes a um bom crescimento e funcionamento psíquico. Este ambiente relacional — entusiástico, previsível, sensível — possibilita que o Eu emerja, se sinta vivo e coerente. E é esta constância que funda, na mente da criança, as primeiras representações de segurança, de continuidade e de valor próprio. Quando estas funções falham — por intrusão, ausência ou incoerência — o mundo torna-se imprevisível e obriga a mente do bebé a organiza-se em torno da defesa e da sobrevivência. Instalam-se modos de funcionamento emocional que podem marcar toda uma vida, impedindo a autenticidade do verdadeiro self. Na clínica, vemos estas marcas sob a forma de vazio, hipervigilância, dificuldades de regulação, medo da dependência. São defesas antigas, construídas para garantir a sobrevivência psíquica quando o ambiente foi insuficiente. Nestes encontros iniciais desenha-se assim o nosso primeiro enredo emocional: confiança ou desconfiança básica, capacidade de depender ou medo da proximidade, sensação de existir para alguém — ou de não ter lugar. E tudo isto se inscreve primeiro no corpo, mesmo antes de existir em palavras. Por isso, a dependência — num sentido saudável — é fundadora da vida mental.
O nosso trabalho terapêutico é, nesta perspectiva, um trabalho de reconstrução do ambiente interno: recriar, na relação, condições para que o Eu volte a confiar e se reorganize. É um trabalho exigente, que pede tempo, presença, profundidade — e que se vê ameaçado pela constante pressão dos números e pela crise que atravessa os cuidados de saúde mental. Porque a crise da saúde mental é também uma crise dos ambientes humanos que deveriam sustentar, conter e permitir a diferenciação. A clínica lembra-nos diariamente que o ambiente continua a ser decisivo em qualquer idade. Cada relação terapêutica — no hospital, no consultório, na comunidade — pode tornar-se uma nova oportunidade de encontro, onde ser compreendido abre caminhos para novos sentidos e significados, caminhos de integração e reorganização interna.
A psicoterapia é esse espaço de hospitalidade psíquica onde o pensamento pode habitar e a dor pode ser sustentada. Quando suficientemente segura, a relação torna-se continente e matriz, devolvendo à pessoa a experiência fundamental de estar em relação sem se perder. A arquitectura interna do Eu constrói-se nestas experiências de presença e ausência, confiança e frustração, encontro e desencontro. É na relação — matéria viva da nossa humanidade — que o Eu pode reencontrar os seus alicerces e nascer de novo. Talvez o desenvolvimento psíquico seja exactamente isto: um processo relacional, contínuo, sempre inacabado. E o trabalho psicoterapêutico, no fundo, ajudar o outro — e a nós mesmos — a continuar a nascer."