26/10/2025
O que observamos hoje nas redes sociais
As plataformas digitais amplificam sentimentos fortes (raiva, indignação) e recompensam reações imediatas. O desenho algorítmico prioriza conteúdos que geram atenção — frequentemente conteúdos emotivos, polarizados e agressivos — porque aumentam o tempo de utilização e o envolvimento. Em consequência, os confrontos de opinião tendem rapidamente a escalar para insulto imediato, linchamento público e hostilidade (anonimato parcial, distância psicológica e reforço social do grupo facilitam isto). Estudos recentes mostram uma relação consistente entre maior utilização de redes sociais e aumento de comportamentos agressivos online, além da correlação entre exposição e vitimização por cyberbullying.
Mecanismos psicológicos e sociais (raiz dos comportamentos agressivos)
1. Desinibição online: a distância e a perceção de impunidade reduzem inibições morais; insultar torna-se “custo-baixo”.
2. Contágio emocional e normalização: a exposição frequente a discursos agressivos dessensibiliza e altera as normas percebidas — se figuras públicas, políticos ou muitos utilizadores insultam, isso normaliza o comportamento.
3. Identidade social e polarização: as redes potenciam bolhas e echo chambers; o Outro é desumanizado e isso facilita o ódio e a xenofobia.
4. Regulação emocional deficitária: muitos adultos não modelam estratégias de autorregulação (respiração, reflexão, perguntar antes de responder); em vez disso respondem impulsivamente. A literacia emocional deficiente é um fator facilitador. Estes mecanismos estão bem documentados em revisões empíricas sobre comportamentos de incivilidade, agressão online e modelos gerais de agressão.
A responsabilidade da classe política e o exemplo público
Os discursos políticos que usam insulto e incivilidade têm efeitos indiretos e diretos: promovem a normalização da agressividade como tática e modelam comportamentos civis — ou a sua ausência — junto de públicos diversos, inclusive jovens. A investigação da área da comunicação política mostra que a incivilidade não é neutra; aumenta emoções negativas, polarização e pode incentivar a reprodução do mesmo registo nas interações quotidianas. Quando líderes e comentadores públicos usam o insulto como estratégia, transmitem que o confronto destrutivo é aceitável — e os algoritmos amplificam essas mensagens.
Escolas, psicólogos escolares e a lacuna de prevenção
A escola é um dos locais fundamentais para a prevenção, treino de competências sociais e regulação emocional. Em Portugal havia, até há pouco, uma lacuna relevante no rácio de psicólogos por aluno: relatórios e análises do Ministério da Educação indicavam rácios muito superiores aos recomendáveis e situações em que um psicólogo cobria várias escolas. A Ordem dos Psicólogos e documentos oficiais têm vindo a pressionar um reforço; em 2025 foi aprovada legislação (Lei n.º 54/2025) que estabelece o objetivo de 1 psicólogo por 500 alunos — uma medida corretiva, que não corrige nada, qualquer um de nós saberá que é humanamente impossível que um psicólogo escolar consiga dar resposta, ainda que em ações preventivas a 500 alunos, nem sequer interventiva a 250! Ainda assim, esta medida revela quanto tempo esteve e está subdimensionado o apoio psicológico nas escolas. A insuficiência de psicólogos impede intervenções preventivas sustentadas (programas de literacia emocional, mediação de conflitos, prevenção do bullying), e torna a resposta a crises episódica e sobrecarregada, já para não referir indignadamente paga.
Saúde mental em Portugal: níveis elevados e recursos insuficientes
Relatórios comparativos e perfis de saúde apontam que Portugal apresenta níveis de ansiedade e depressão entre os mais elevados da União Europeia; simultaneamente, a despesa pública em cuidados e estruturas de saúde mental tem limites e a oferta de cuidados primários psicológicos e hospitalar continua aquém das necessidades populacionais. Isto traduz-se em menos prevenção, menos intervenção precoce e mais vulnerabilidade para a escalada de problemas (incluindo reações agressivas e diminuição da capacidade de autorregulação).
Ambiente laboral: tensão, toxidade e consequências
Estudos nacionais e relatórios da Ordem dos Psicólogos mostram custos elevados relacionados com stress e problemas de saúde mental no trabalho (custos económicos e humanos substanciais). Ambientes “de cortar à faca”, abuso de poder, falta de conciliação efetiva, precariedade e baixos salários aumentam irritabilidade, esgotamento e reduzem a tolerância à frustração — fatores que se transbordam para o comportamento online (comentários agressivos, queixas públicas, “desabafos” hostis). A nível europeu existe também preocupação sobre a insuficiência de legislação que imponha medidas para os riscos psicossociais no trabalho.
Conjuntura socioeconómica portuguesa: habitação, custo de vida e rendimento
A crise de habitação que assola todo o país, o aumento do custo de vida, aliados a salários médios que ficam distantes do custo de vida real criam fricções sociais e uma sensação persistente de insegurança económica. A pressão financeira constante alimenta ansiedade, frustração e uma menor capacidade de tolerância ao conflito, potenciando reações agressivas quando a frustração encontra um veículo rápido de desabafo (as redes sociais).
Racismo, xenofobia, machismo e criminalidade: fatores de reforço online
Os discursos de ódio já existentes no tecido social encontram nas redes sociais um amplificador: o anonimato, a divulgação viral e a possibilidade de criar comunidades de apoio tornam-nos mais visíveis e mais fáceis de propagar. A investigação sobre incivilidade e intolerância evidencia que conteúdos desumanizantes e retóricas de exclusão encontram maior tração quando reforçados por comunidades online que legitimam a violência simbólica e real. Estas dinâmicas têm também repercussões na segurança pública e na perceção da criminalidade.
Jovens e IA: da companhia à dependência emocional
No espaço dos últimos anos emergiu uma linha robusta de investigação sobre como jovens e jovens adultos estabelecem relações emocionais com chatbots e “companheiros” digitais. Estudos e análises longitudinais indicam que a utilização intensiva de IA como companhia ou apoio emocional está associada, em subgrupos de utilizadores, a menor bem-estar psicológico e a padrões de dependência emocional: se o jovem utiliza a IA como substituto de redes humanas reais, o risco de isolamento e de autorregulação emocional deficitária aumenta. A literatura mostra também que menores (adolescentes e pré-adolescentes) são mais suscetíveis a antropomorfizar agentes digitais e a formar ligações afetivas intensas — o que merece políticas de proteção e literacia digital dirigida.
A conjuntura:
• Estruturas (habitação, trabalho, políticas públicas) geram stress crónico, criando uma população mais reativa.
• Mau exemplo público (incivilidade política) baixa as normas de convivência e legitima respostas agressivas.
• Plataformas e algoritmos amplificam a emoção e o conflito.
• Escolas e serviços de saúde mental insuficientes falham na prevenção e no ensino de competências socio-emocionais.
• IA como companhia oferece alívio imediato, aprofunda dependências e empobrece as redes humanas.
Esta intersecção produz um caldo propício à raiva explícita, ao insulto imediato e à rápida escalada de conflitos nas redes — e, muitas vezes, somos os adultos a modelar esse comportamento, sem consciência de que o estamos a fazer há anos.
O que a evidência recomenda
1. Reforço massivo de literacia emocional nas escolas: programas curriculares de competências socio-emocionais e treino explícito de regulação emocional e resolução de conflitos — com psicólogos em número suficiente para ser intervenção preventiva e estruturada (o rácio de 1/500 é, ainda assim, vergonhoso).
2. Investimento em Saúde Mental Comunitária e cuidados primários: acesso fácil a intervenções psicológicas, serviço de apoio escolar e linhas de ajuda; integração entre saúde e escola.
3. Políticas laborais e regulamentação dos riscos psicossociais: legislação que imponha avaliação e mitigação de riscos psicossociais, promoção de conciliação vida-trabalho e salários que permitam segurança básica.
4. Regulação e responsabilização das plataformas: medidas que reduzam incentivos a conteúdos incendiários (transparência algorítmica, moderação robusta, desenho que privilegie conversas deliberativas). Estudos destacam que a incivilidade viraliza rapidamente e que o desenho da plataforma influencia comportamentos.
5. Educação digital para pais e adultos: formar pais, professores e decisores para compreender algoritmos, mediá-los e modelar comportamentos de respeito e controlo emocional — os adultos devem ser exemplo.
6. Políticas específicas sobre a IA e utilização por jovens: limites de design, supervisão parental/educacional e avaliação de risco por idade; rotas de saída e referenciamento para apoio presencial quando aparecem sinais de dependência.
Responsabilidade coletiva
As evidências científicas dos últimas cinco anos (e de 2024–2025) deixam claro que aquilo que vemos nas redes — raiva, insulto, ódio e comportamentos discriminatórios — não é inevitável nem apenas a “tecnologia a funcionar”. É o produto da combinação entre fatores psicológicos, económicos, institucionais e de desenho das plataformas. Há um aspeto profundamente ético nisto: somos nós, enquanto adultos, profissionais, decisores e pais, que estamos a ensinar comportamentos — por ação, reação ou por omissão. Ao responder com insulto, alimentamos modelos que os jovens imitam; ao não exigir políticas públicas que priorizem a saúde mental, perpetuamos um sistema que produz sofrimento e reações agressivas.
A responsabilidade é dupla: exigir reformas (mais psicólogos nas escolas, na saúde, nas organizações, mais investimento em saúde mental, políticas laborais e leis que protejam o equilíbrio vida-trabalho e o ambiente laboral, regulação das plataformas e medidas reais para a crise económico-social) e mudar o nosso comportamento quotidiano — aprender a regular-nos, a discutir com cortesia, a moderar o impulso de “responder ao ataque” e a modelar o respeito junto dos nossos jovens e crianças. Sem ambas as frentes — estrutura e cultura — as alterações serão superficiais.
Ana Maria Medeiros
Psicóloga
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Fontes (estudos e relatórios citados — leitura recomendada)
• Kee, D. M. H. et al., Cyberbullying on social media under the influence of COVID-19 (2022).
• Bansal, S., Cyberbullying and mental health: past, present and future (Frontiers in Psychology, 2024).
• Goyanes, M. et al., Effects of social media news use and uncivil political discussions (2021).
• OECD, Portugal: Country Health Profile 2023 (perfil e recomendações sobre saúde mental).
• WHO / Eurohealth Observatory, Portugal health system summary 2024.
• Ordem dos Psicólogos Portugueses — documentos e posicionamentos sobre psicólogos nas escolas; Lei n.º 54/2025 (rácio 1 psicólogo/500 alunos).
• Ordem dos Psicólogos Portugueses, Cost of Stress and Psychological Health Problems at Work in Portugal (relatório, 2023).
• MIT Media Lab & estudos longitudinais sobre chatbots/companionship (2025) e análises sobre dependência emocional a chatbots e impacto no bem-estar (estudos 2024–2025)