
29/08/2025
Era uma vez… um beijo roubado. Um beijo que não foi pedido, nem sequer imaginado, mas que nos ensinaram a admirar. A suspirar. A desejar. Foi assim, com este gesto camuflado de magia, que começou o encantamento mais tóxico da nossa infância — o feitiço que nos ensinou a confundir invasão com paixão.
Branca de Neve estava inconsciente quando foi beijada. Sim, dormia, vulnerável, e um homem estranho decidiu que o seu amor era suficiente para justificar atravessar-lhe os lábios. Chamaram-lhe príncipe. Chamaram-lhe herói. Nós chamámos-lhe “romântico”. Mas e se olhássemos outra vez, desta vez sem os óculos cor-de-rosa da infância? Talvez víssemos um invasor de corpos, um violador de limites, um homem que não ouviu um “sim” — e mesmo assim avançou. Aurora, a Bela Adormecida, nem sequer sabia que existia um príncipe. Ariel perdeu a voz para conquistar um homem que nunca a escutou. Bela apaixonou-se por alguém que a manteve em cativeiro. E Rapunzel só saiu da torre quando um homem decidiu que sabia o que era melhor para ela.
Todas estas estórias têm algo em comum: mulheres com limites violados e homens glorificados por isso. Porque o que nos foi contado, nos livros, nos desenhos animados, nas músicas e nos gestos à nossa volta, foi que um homem que te invade é um homem apaixonado. Que se ele te persegue, é porque te quer. Que se ele insiste quando tu dizes “não”, é porque o amor não desiste.
É aqui que as estórias encantadas deixam de ser inofensivas. Porque elas não nos ensinaram a amar — ensinaram-nos a suportar. A aguentar. A engolir o silêncio quando o corpo grita. A acreditar que um “não” é o início de um jogo e não o fim de uma escolha.
A psicologia confirma: fomos socializadas para ver sinais de alerta como provas de amor. A insistência como esforço. A possessividade como intensidade. O ciúme como zelo. O controlo como demonstração. E o desconforto? Como preço a pagar por uma história bonita.
Este romantismo da dor está a matar-nos — literal e simbolicamente. Está a ensinar às raparigas que o seu “não” vale menos que o desejo de um homem. Que um beijo sem permissão é uma bênção e não uma bandeira vermelha. Que o desconforto é sinal de intensidade, e não de alarme. Está a criar uma geração de mulheres que duvida do próprio instinto.
Reescrevamos o conto. Deixemos de romantizar o que nos rasga. E, sobretudo, deixemos de aceitar como amor aquilo que sempre foi, apenas e só, violação disfarçada.
– A minha crónica para a Revista LuxWoman de Agosto – "Estórias encantadas ou a romantização das barreiras violadas" – está disponível online aqui, na sua versão aberta e integral. 👉 https://www.luxwoman.pt/estorias-encantadas-ou-a-romantizacao-das-barreiras-violadas