22/08/2025
𝐍𝐎 𝐂𝐎𝐍𝐕𝐄𝐍𝐓𝐎 𝐃𝐀 𝐋𝐎𝐔𝐑𝐈𝐍𝐇𝐀̃
Eram cinco horas da tarde …
As coronhadas deitavam abaixo a portada do velho convento onde, pálidos e convulsos, os recolêtos franciscanos, reunidos nos claustros, oravam ajoelhados sobre as campas dos velhos frades.
- Os franceses !... os franceses !… tinha vindo anunciar o irmão porteiro.
A gritaria dos imperiais chegava até os claustros. A soldadesca havia chegado pela meia tarde, à Lourinhã sem hostilidades. Percorrera as casas da vila pedindo de comer, depois do que se espalhara pelas adegas onde não fizera distúrbios. O vinho não estava cosido nem a agua-pé devidamente clarif**ada.
Eram mais de cem soldados, quase todos jovens.
- A tropa não vinha insubordinada mas talvez um pouco desmoralizada pelos cheques sofridos na campanha.
Assim rezavam os apontamentos que tenho ante mim neste momento e que se devem ao respeitável lourinhanense, Sr. Henriques, a quem se tem feito referência nas cronicas anteriores.
Masséna estava vencido …
Era-lhe necessária a retirada enquanto o país, animado com os sucessos da guerra, não se levantasse, ardido de maior entusiasmo e decisão. Começou, então, o recuo que ficou marcado como movimento hábil desse israelita que foi um grande chefe de tropas !
E a soldadesca continuava a bater à porta do convento acompanhando as coronhadas com grandes risos e cantigas na sua língua natal.
- Franqueiem-lhes a entrada ! ordenou o superior com decisão.
-Chegou a nossa hora! Gemeram os frades mais novos, talvez aqueles que ainda tinham apego a vida …
Os velhos, desiludidos das coisas deste pobre mundo de misérias, de provações e angústias, esperavam serenamente os acontecimentos.
- Eram doze os frades que estavam nessa ocasião no convento. Cinco eram já de idade avançada. O superior chamava-se Fr. António e substituía o titular, então ausente.
Informa ainda o sr. Henriques, nos seus preciosos quanto interessantes apontamentos.
Os franceses entraram de roldão apenas a porta lhes foi franqueada pelo frade que, de atarantado, não atinava com as chaves nem com o manejo dos ferrolhos. Os soldados invadiram o convento e foram topar com os religiosos,
-... ajoelhados nos claustros e o superior lançando para o monte a absolvição que lhe havia sido pedida em caso de perigo de vida.
Quedaram-se os soldados imperiais ao ver a atitude daqueles homens que não contavam já com a existência. Os franceses sossegaram-os com frases amistosas e trataram de afastar os camaradas que estavam um pouco turvados de bebida.
Informaram que não perpetrariam violência contra homens indefesos e somente pediam alguma comida, se a houvesse, uns caldeirões com água quente, se também. fosse possível arranja-los para as suas lavagens, e guarida por poucas horas.
- Parece que esta tropa ia com destino a Peniche onde havia uma espécie de deposito.
Aquietaram-se os frades mas tiveram de puxar para os rostos os capuzes ... Alguns dos soldados vinbam ternamente abraçados a mulheres que, como e de doloroso costume, soem de seguir as tropas em campanha, pobres desgraçadas mais dignas de comiseração que de ultrajes e cuja estadia perto dos. acampamentos- é consentida pelos altos comandos, como necessidade humana aconselhada pelos higienitas e previdência sugerida pelos tratadistas de psicologia.
- Il faut que la chair soit satisfaite chez les homme de guerre… (A carne deve ser satisfeita em homens de guerra.)
O convento da Lourinhã, antigo sufraneo do de Xabrégas, de Lisboa, fundado no ano de 1598, não era, nem jamais foi medrado da importância de outros seus contemporâneos.
Os frades viviam pobremente e sem conforto, conforme a sua regra austera e de sacrifício das mundanidades. O bem estar era apanágio dos da regra cisterciense que somente jejuam depois de fartos …
Os religiosos do convento da Lourinhã apenas tinham para o passadio modesto e frugal de todos os dias e para socorrer a pobreza que procurava os seus sobejos na portaria. Os franceses deviam ter visto logo que não haviam caído num mosteiro bernardo fornecido de boa dispensa e melhor frasqueira …
O superior da comunidade mandou acender as fornalhas ainda quentes e preparar uma refeição. Enquanto se preparava o magro cozinhado, porque realmente era dia de magro, segundo registou o benemérito Sr. Henriques, os franceses mais as raparigas (espanholas na sua maior parte,/ cantavam e bailavam nos claustros a luz mortiça das lanternas, com grande escândalo dos frades que nunca tinham visto semelhante bregeirice de portas a dentro …
Após a refeição de
-... peixe seco com batatas, avultada por grandes pratadas de figos de inverno, chamados do Paraíso, e de bastantes canadas de agua-pé ainda não bem cosida, comida da qual compartilharam as raparigas, armou se outro ba ilarico nos claustros, a despeito dos protestos dos frades.
Os franceses não eram maus, é certo ; todavia desrespeitaram a hospitalidade, e, sobretudo, o local onde dormiam o sono eterno alguns dos antigos donos daquela casa que os tinha acolhido.
O triste mulheredo que, sem conta nem medida, havia emborcado bastos cangeirőes de agua-pé, empiteirou-se de tal
forma que os pobres frades viram-se perdidos …
-... dois religiosos, velhos, respeitáveis, estiveram nos braços delas e ouvirem tremendas tolices.
Foi preciso fecha-las numa casa, no claustro
-... ao lado daquela onde em tempos se guardava o tragalho dos frades; disseram tanto palavrão indecente que se tornou necessário largarem-lhes socos com liberalidade.
Uma delas quis lançar-se na cisterna da claustra gritando que lhe apetecia muito tomar banho …
Depois de grande gritaria e protestos é que adormeceram tendo ainda dirigido aos frades escandalizados amáveis convites que, a serem aceites, dariam com as suas almas em pantanas, álem da falta ao juramento de castidade, essa adorável blague que nem os próprios santos podem cumprir ...
Os soldados imperiais pernoitaram no convento onde se instalaram conforme puderam; colocaram sentinelas à roda do edifício, patrulharam a vila da Lourinhã, durante a noite
- ...e atalaiaram-se no monte que f**a a cavaleiro da vila, e onde se ergue a velha igreja do Castelo.
Apesar-de carregados com trabalhos e misérias profundas os soldados que passaram nessa ocasião pela antiquíssima vila da Lourinhã, não eram maus.
Assim o compreenderam os frades que os trataram com muita caridade e paciência, curando alguns que vinham feridos e desculpando as inconveniências da companhia miseranda que traziam.
Dealbava quando se ouviu um clangor de trombeta. Os soldados acorreram prontamente a portaria com as armas na mão. Dois militares a cavalo davam ordens. Um deles apeou-se e foi entender com a comunidade.
Sabendo da permanência, dentro do convento, do enxame pouco decente da raparigada, mandou expulsa-las do edifício, e, segundo parece, verberou o procedimento pouco enérgico de quem comandava a tropa.
-Os franceses saíram e foram entao formar na Rua Grande, em frente da casa do Dias peixeiro.
Esta casa foi mais tarde pertença do sr. Vitorino José Caixaria, desta vila de Lourinhã.
A tropa marchou depois em direção a Peniche, seguida a pouca distância pelo bando das desgraçadas raparigas, misero rebanho de carne vilipendiada, acorrentada à degradação desse calvario pungente da vida, eterno quadro doloroso da guerra, esse monstro que não somente se nutre do sangue e das vidas como também da honra alheia …
Diz ainda o venerável Sr. Henriques:
- Algumas eram lindíssimas e gentis, na sua maior parte espanholas; vinham mal vestidas e descalças, contando-se nesse grupo mocinhas de quinze e dezasseis anos!…
Vinte dias depois
-... por sinal tempestuoso e agreste, pelas quatro horas da tarde, chegou à Lourinhã uma patrulha de cavalaria inglesa vinda do sul …
Começava o avanço cauteloso e prudente do exercito luso-britânico, na peugada de Massena, Príncipe de Essling, o filho querido da Vitoria, que recuava vencido …
Ia desiludido e triste; nem sequer o animava a presença, a graça, a gentileza, a infinda ternura e o encanto da gentil senhora, sua linda amante, que o acompanhava nessa dolorosa campanha de Portugal onde se apagou o seu grande prestigio de soldado do Império !...
Lourinhã
Júlio de Sousa e Costa”
Fonte do texto: Gazeta de Torres Nº 211 de 27 de setembro de 1930, da Biblioteca Municipal de Torres Vedras
Fonte da imagem: Francisco Fernandes Photography
Município da Lourinhã
CIBV - Centro de Interpretação da Batalha do Vimeiro