20/08/2025
"𝐀 𝐂𝐀𝐌𝐈𝐍𝐇𝐎 𝐃𝐎 𝐕𝐈𝐌𝐄𝐈𝐑𝐎 (𝟏𝟖𝟎𝟖)
À memoria dos soldados do exercito luso-britânico que na tarde de 18 de Agosto de 1808 passaram pela Lourinhã e que, como valentes, foram morrer, dois dias depois, na sangrenta peleja do Vimeiro.
A' memoria respeitável dos lourinhanenses que nesse mesmo dia 18, com interesse e dedicação, acolheram os vencedores da Roliça, mantendo, assim, de maneira gentil, a tradição da generosidade da sua nobre terra, sempre tão esquecida ...
Enterrados os mortos, e cuidados os feridos, feita a limpeza sumaríssima das armas e canhões, concertados, bem ou mal, os carros e reparos da artilharia e abatidos os animais inutilizados ou agonizantes, as tropas luso-britânicas, após algumas horas de descanso, decamparam da Roliça e marcharam na direção do Sul.
Chegaram á Lourinhã pelas catorze horas de 18 de agosto (*) vinte e quatro horas depois do terrível combate e em
virtude da conversão ordenada pelo Tenente-General Arthur Wellesley (**) que parece ter tido necessidade de traçar outro plano de campanha além da conveniência de seguir ao longo da costa afim de receber os reforços vindos de Inglaterra.
O sol era de calcinar ... Viração alguma a adoçar, sequer, um álosinho aquela atmosfera de fogo! Os pobres soldados chegaram à Lourinhã cobertos de poeira, queimadíssimos e alquebrados pela marcha forçada nas últimas horas.
Meia hora antes da sua chegada vieram à frente, em exploração, vinte e tantos soldados de cavalaria portuguesa da Guarda Real de Policia, os quais avisaram as autoridades.
Os habitantes da vila aprestaram-se a servir lhe de utilidade. Daí a uma hora apareceram soldados ingleses e núcleos de tropa escocesa a qual se fazia acompanhar das suas tradicionais gaitas de foles e por quatro ou cães corpulentos que vinham à trela e conduzidos por dois soldaditos muito novos.
Os apontamentos do Sr. Henriques a quem ja me referi numa cronica anterior informam:
« -... os rapares não tinham dezas«seis anos. Um deles, de cabelo muito alouro, quase branco, vinha ferido na cabeça; tratou com imenso cuidado dos animais a seu cargo e deu-lhes de beber primeiramente, posto que viesse também morto com sede.»
Os soldados da cavalaria portuguesa que tinha procedido o grosso das tropas, foram alojar-se ao cabo sul da vila. Não vinham menos derrancados também.
«- Utilizaram para os animais a araribana do José Cosme, dos casais de Lourim, e eles foram descansar em casa do António Pereira, a poucos passos da mesma arribana.»
A toda a hora chegavam tropas que acamparam por onde calhou. Os ingleses lavaram-se na rua, aos três e aos quatro,
em cêlhas e baldes e «desencascaram a pele, cheia de poeira e suor, com uma espécie de raiz»
Presumo que talvez fosse a ricinus saponarius, erva saboeira que se usou durante muitos anos nos exércitos quando não havia outra forma de ocorrer à limpeza pessoal e bem assim a lavagem de roupas e fardamentos. Após isto foram à procura de fruta, principalmente uvas. Alguns entraram em várias casas onde pediram comida; outros rogaram ap***s que os deixassem descansar em qualquer parte e nem vontade tinham de comer ... Vinham desfeitos !... Dormiram sobre esteiras, mantas e colchões que a boa vontade de todo o povo lhes prestou.
Todos os lourinhanenses se comportaram de maneira bizarra e generosa andando as criadas das casas abastadas a acarretar fruta, pão, ovos, carne e vinho para os soldados.
«- Houve nesse dia quem fizesse dois jantares; um para os da casa e ao outro para os militares. Dois ingleses vinham tão doentes com golpes de sol que f**aram três dias na terra.»
Era a insolação que tantos estragos fez no exercito anglo-luso na manhã em que foi pelejada a ardida e sangrenta batalha do Vimeiro.
Havia nesse tempo um grande e magnifico caniçal junto à ermida da Senhora dos Anjos. Nele se foram acoitar
bastantes soldados ingleses naquele terrível dia de calor.
« ... e tão intenso foi ele que até os passaritos tombaram das árvores. O sol parecia lume e no dia do Vimeiro ainda foi pior ...»
Era preciso acalmar a sede e os ingleses, apesar de fleumáticos e graves, foram à cata do remédio ... a pinguinha lusitana que eles tanto adoram …
«- Grandes pielas coseram eles nesse dia! Muito beberam!»
É' de calcular tudo isto ... E quem estiver isento do pecado de, pelo menos uma vez na vida, ter sacrif**ado Baccho, que lhe atire a primeira ... medida!… Desculpo os ingleses de 1808 ... a contemporânea e a vindoura até à consumação dos séculos ! E porquê ? Porque na nevoenta e frígida Albion não é conhecida a granda satisfação ver sair dos túneis, espumoso e lindo na sua cor natural de rubim de tons diferentes, ou de topázio doirado e cintilante, esse vinho provindo de excelentes uvas colhidas nos esplêndidos vinhêdos de Portugal, nesses belos e alegres dias de Setembro sob a bênção da luz do sol criador e fertilizante ... Falta-lhe a abundância que nós temos …
«- Vinha com os ingleses certo indivíduo, já de idade, com óculos, vestido de preto, de polainas, muito grave e sizudo, que também bebeu, e de grande, na taberna que havia na Praça, ao lado da do Manuel da Cândida. Este último também fez bom negocio e vendeu todo o vinho que tinha.»
Iria jurar que este senhor grave e sizudo era capelão protestante da tropa inglesa. E o que tem isso? Não me consta que haja incompatibilidade entre apreciador de bom vinho e teologo …
Vinum laetif**at cor hominis !... Diz o proverbio. Ora se a pinguita, que tem cabida litúrgica na missa, alegra o coração do homem, não há que fazer reparos no cidadão que « também bebeu, e de grande», em ocasião em que a vida lhe andava em risco …
Se me constasse que ele havia dito heresias do vinho da Lourinhã e sem termo, eu com perdão das suas honradas cinzas, botava-lhe nesta cronica uma fala amarga …
«-- Os soldados tiveram as adegas à franca ... »
Para muitos deles fora, quiçá, a sua ultima alegria neste mundo .. À roda de bastantes, andava já, rondando, o negro e sinitro espéctro da morte, que os esperava no Vimeiro …
«- À tarde já pela fresca, ao som das gaitas de foles e tamborins, entoaaram, de cabeça descoberia e com reacolhimento, uns cânticos tristes. Em seguida solfearam canções que pareaciam guerreiras, estrepitosas e que pessoa alguma compreendeu.»
Se o coletor das preciosas notas houvesse alcançado o assunto dos hinos entoados com marcial arreganho pelos soldados britânicos e o lançasse nas suas ementas, que belo subsidio para avaliar o espírito daqueles homens estrangeiros que passaram algumas horas na vila de Lourinhã!…
Todavia não será inconsequentes avançar que estas canções deveriam ter sido as da velha Escócia, terra sonhadora ... ninho de bardos e de segreis !…
Para a garotada da Lourinhã é que fora de alta novidade aquele concerto. Somente estava costumada a admirar as habilidades e os talentos musicais do gaiteiro e seu indispensável comparte, o tamberileiro, dos cirios de Torres e do próximo lugar de Marteleira que soíam ir á afamada peregrinação da Senhora dos Remédios.
-«Curioso certo canto com interruapções e que terminava por um grito rouco, prolongado, acompanhado pela gaita de foles e rufos espançados dos tambores. Causou grande impressão ... »
Quem tomou as notas era, evidentemente, espírito observador e de sensibilidade. Foi pena não ter coligido em livro, (que teria hoje imenso valor,) as suas interessantes e ótimas anotações.
«- Os rapazes andavam em volta dos «soldados pedinchando a bolacha escura amanhada com sementes de erva doce, que eles comiam; a bolacha era muito rija, porém saborsa,»
Não me admira a gulodice da rapaziada porque ... porque fiz o mesmo.
Se a minha avó materna, Maria Bárbara, da Lourinhã, anunciava uma brindeira, ou bolo, eu já não lhe saía da beira, com constante vigilância à boquinha do forno, plantão de olho alerta, espírito inquieto, sempre com o receio de ver desenhar-se no horizonte grande e misteriosa tramoia que tivesse por escópo desapossar-me da apetecida guloseima …
Ficámos também sabendo que o autor das preciosas notas provou da tal bolacha inglesa «rija, porem saborosa».
Acamaradou com a rapaziada lourinhanense e deu-nos uma nota interessante e curiosíssima que reputo digna de ser mencionada nesta cronica.
Estavam no melhor da festa quando se ouviu grande alarido na parte norte da vila.
O pregoeiro da Câmara corria as ruas gritando o alarme do maior flangelo do mundo ...
- Fogo! Há fogo!
«- Ardia o palheiro e o estábulo peratencente ao António Pedreira, na Rua do Hospital. Acudiram muitos soldados que trabalharam bem, metendo-se pelo incêndio e salvando ainda dois animais maiores e utensílios de lavoura.»
Somente f**aram de pé as paredes enegrecidas; o terrível brazeiro consumira palhas, rações e consideráveis valores representados em arreios, ferragens da lavoura etc.
Nessa noite a atmosfera foi asfixiante; a maior parte da soldadesca dormiu nas ruas sob a vigilância das patrulhas que continuamente giravam pela rua e da dos postos avançados que havia pelos arredores da localidade e até meio caminho do Vimeiro.
A tropa partiu em 19, pela madrugada. Ia já um pouco reposta da fadiga das marchas do dia anterior sob a ardência do sol abrasador daquele agosto bem incendiado!
Dai a dois dias o exercito luso-britânico combateu valentemente no Vimeiro onde as aguis de Napoleão deixaram outro grande destroço de p***s despedaçadas e sangrentas …
Barquinha
Júlio de Sousa e Costa
(*) Inquérito inglês sobre o procedimento do Tenente-General Hew Dalrymple.
(**) Pela noticia da aproximação à costa, dos navios ingleses que a seu bordo transportavam as brigadas Antruther e Ackland, Wellesley fez uma conversão para a Lourinhã. Excertos históricos do Sr. General Claudio de Chaby - Vol. 3.°, pág. 73.
Fonte do texto: Gazeta de Torres Nº 133 de 16 de março de 1929, da Biblioteca Municipal de Torres Vedras
Fonte da imagem: https://o-povo.blogspot.com/2008/08/h-200-anos-batalha-do-vimeiro-21-de.html
Município da Lourinhã
CIBV - Centro de Interpretação da Batalha do Vimeiro