30/10/2025
Eu vejo-te para além do que fizeste
(por Celso Oliveira)
O julgamento nasce, muitas vezes, como um reflexo rápido, quase automático, antes mesmo de a razão chegar. É como uma sombra que se adianta ao corpo. Vemos alguém, escutamos uma frase, observamos um gesto e, silenciosamente, erguemos um veredicto. Esse movimento não é apenas social. É também psicológico. E, com frequência, diz mais sobre o nosso universo interno do que sobre a realidade do outro.
Julgar o outro pela aparência, pela forma de se expressar, pelas escolhas afectivas, profissionais ou espirituais, é esquecer que aquilo que vemos é apenas a superfície de uma biografia complexa. Cada pessoa é um texto já escrito e em permanente reescrita. E nenhum texto se compreende lendo apenas o título. A diferença não é ameaça. É a prova de que a humanidade não foi moldada em série. Onde há diversidade, há potencial de encontro, complementaridade e criação. Uniformidade dá segurança aparente, mas é a variedade que dá vida.
Na clínica e na vida, sabemos que o julgamento muitas vezes protege. Protege do medo do desconhecido, da sensação de perda de controlo, da confrontação com o que em nós ainda não está integrado. Quando alguém julga de forma severa, talvez esteja a dizer, sem o saber: “Há em mim partes que ainda não reconheço.” Assim, o julgamento funciona como um espelho invertido. Atribuímos ao outro aquilo que nos custa aceitar, nomear ou incluir em nós. A psicologia das projecções tem-nos mostrado isto de forma consistente: o que irrita em demasia, o que activamente rejeitamos, pode ser precisamente aquilo que está a bater à porta da nossa consciência.
Por isso, enquanto profissionais e enquanto pessoas, o caminho que dignifica é outro. É o da empatia lúcida. Não uma empatia ingénua, que tudo desculpa, mas uma empatia informada, madura, que pergunta antes de concluir. Que procura compreender o contexto antes de classificar a conduta. Que escuta as condicionantes biográficas, os traumas, as aprendizagens, os vínculos e as faltas. Compreender não é justificar. É localizar. E localizar o comportamento numa história concreta é um gesto ético, porque devolve humanidade a quem podia ter sido reduzido a um rótulo.
Substituir o julgamento pela compreensão é como trocar uma lente estreita por uma janela larga. Quando compreendemos, abrimos espaço. E onde há espaço, a relação pode crescer. A compreensão fortalece equipas, famílias e comunidades porque retira do convívio a ameaça constante de ser alvo de crítica silenciosa. Quando alguém sente que pode ser visto na sua totalidade, com a sua dor e os seus recursos, com os seus erros e a sua intenção de reparar, sente-se mais disponível para mudar. A mudança raramente nasce de um apontar de dedo. Nasce muito mais de um olhar que diz: “Eu vejo-te para além do que fizeste.”
No âmbito profissional, esta atitude é ainda mais decisiva. Quem trabalha com pessoas precisa de manter vivo este princípio: toda a conduta tem uma função psicológica, mesmo quando é disfuncional. Julgar pára o processo. Compreender põe o processo em marcha. O julgamento fecha, a compreensão abre. O julgamento isola, a compreensão liga. Numa relação terapêutica, educativa ou de ajuda, o respeito pela singularidade é condição de eficácia. Cada sujeito traz consigo a sua gramática afectiva, os seus mecanismos de defesa, o seu modo de sobreviver. Olhá-lo apenas pelo desvio ou pela estranheza do seu comportamento é empobrecer a leitura clínica.
Podemos pensar na diferença como num jardim de espécies raras. Há flores discretas que não chamam imediatamente a atenção. Há outras que, pela cor, confundem ou surpreendem. Se olharmos apenas com os critérios de uma só flor, diremos que as outras são inadequadas. Mas o jardim não foi feito para um olhar monocromático. Foi feito para quem sabe demorar-se. E a convivência humana também.
Por fim, substituir o julgamento pela compreensão não é apenas uma escolha relacional. É uma escolha identitária. É decidir que queremos ser pessoas que ampliam o mundo do outro, e não que o encolhem. É optar por uma ética que humaniza, porque reconhece que, no fundo, todos caminhamos entre fragilidades e desejos de pertença. Quando cultivamos esta postura, tornamo-nos lugares seguros para aqueles que nos rodeiam. E um lugar seguro é sempre fértil. É nele que nasce a aceitação e, com ela, o crescimento mútuo.