24/05/2022
Conhece-te a ti mesmo
‘Conhece-te e ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses’. Esta é a frase que na Grécia antiga estava colocada à entrada do Santuário de Delfos, templo dedicado a Apolo – deus da luz, da razão e do conhecimento verdadeiro. Já nessa altura se considerava que o verdadeiro conhecimento vem de dentro de cada um, e assim continuou pelos séculos, através dos grandes pensadores e filósofos. No entanto, atualmente, rodeados de cada vez mais informação, cada vez nos conhecemos menos. Na família, na escola, no convívio social quase tudo se direciona no sentido contrário.
Com famílias com núcleos cada vez mais reduzidos e em que todos trabalham, as crianças vão crescendo em cresces ou ATL, onde o importante é que o grupo não seja muito disfuncional, f**ando o convívio familiar reduzido a poucos momentos à noite, muitas vezes ainda divididos com a televisão ou as redes sociais.
Nas escolas, os métodos de ensino são direccionados para a aquisição de conhecimentos, tendo em vista a entrada em estudos superiores ou numa profissão específ**a. O objectivo de futuro tem que ser delineado cada vez mais cedo, e tudo gira à volta dele. Não há tempo nem espaço para hesitações, pois isso implica atrasar-se em relação aos outros.
E é precisamente esse “outros” que passa a comandar a vida de cada um. Se nem na família nem na escola existe espaço de criação e de reflexão, as crianças não têm amarras e vão crescendo nos diversos grupos a que se esforçam por pertencer e desabituam-se de si próprias. É o grupo que molda e dita as regras, seja da forma de vestir, das músicas que ouve, dos locais que frequenta, dos objectivos e até da forma de pensar. São poucos os que se atrevem a pensar por si próprios, discordar do grupo e ter opinião diferente, pois na maior parte das vezes isso implica deixar de pertencer ao grupo e f**ar desenraizado. Isto para já não falar dos riscos quando o grupo envereda por comportamentos desviantes.
Não existe o tempo e o espaço necessários à evolução individual. Não há espaço para se estar sozinho, em ter momentos para pensar, em tomar decisões por si próprio, pois o grupo está sempre presente, seja fisicamente seja através das chamadas “redes sociais”. E aí também não há espaço para falar de si próprios, dos seus problemas e ansiedades, pois o importante é dar uma imagem de vencedor, de confiança, de que “está tudo bem”. Constrói-se um personagem e vive-se esse personagem que se projecta num espelho e que f**a disponível para todos. O que f**a atrás do espelho nem o próprio sabe o que é.
‘Conhecemos com obsessivo detalhe o mundo externo e faltam-nos recursos para reconhecer e cartografar a nossa paisagem interior. Multiplicamos a quantidade de saberes e ignoramo-nos a nós próprios. Familiarizados com um número sempre crescente de tecnologias e de fórmulas, não é raro que nos descubramos analfabetos da nossa própria alma, que nunca aprendemos verdadeiramente a escutar. E contudo não deveríamos esquecer que a convivência mais autêntica com o real nasce dentro de nós e que o timbre da nossa vida é, desde sempre, ressonância desse facto’. – (José Tolentino Mendonça in jornal Expresso)
Desconstruir o personagem e deixar vir ao cimo a personalidade é mais difícil quanto mais tarde isso acontecer. Devíamos começar com as nossas crianças, dar-lhes espaço e tempo para si próprias, mesmo que de início isso as contrarie; criar ou deixar que existam espaços de diálogo, na família, sem interferência da tecnologia; estimular a criatividade e discussão com os jovens, através do diálogo, ajudá-los a descobrir-se a si próprios; e nos mais adultos cultivar a prática da meditação. Os momentos em que se está sozinho não devem ser entendidos como momentos de solidão, mas sim como oportunidade de se conhecer, de se superar e evoluir como ser humano.
Ser feliz tem a ver com a forma como nos sentimos e não como nos projectamos nos outros.