17/08/2025
Escrevo-vos porque sei que vão acordar à noite muitas vezes com o cheiro a fumo, a queimado, preso ao corpo. Sei que vão ver a cena numa repetição infinita: as mãos que não chegaram a tempo, os olhos que se fecharam para sempre, o silêncio dos alarmes, os gritos pelos corredores. Sei que vocês tentaram. Deram corpo, e pulmão, e braços, e desespero, e doeu tanto, tanto. Alguns morreram, que m***a, que m***a; mas dezenas viveram porque vocês não desistiram.
Muita gente vai ser cruel convosco: vai chamar-vos negligentes, vai apontar-vos o dedo, vai ofender se puder, vai magoar se puder. Descansem: muitos vão saber, como eu sei, que não era possível salvar todos num minuto de fogo. Estamos cada vez mais viciados em culpados. Deve ser o mecanismo mais fácil para lidar com as misérias da vida. Não aceitem essa sentença.
Reaprendam. Reaprendam a entrar em quartos, a arrumar camas, a dar banho, a dar um ombro, ou os dois, a quem muito deles precisa. A memória vai empurrar-vos muitas vezes para aquela madrugada. Haverá noites em que sentirão que estão a morrer com aquelas pessoas. É natural. Mas o trabalho que fazem é maior do que as mortes que não puderam evitar. Continuem. Persistam. Sejam a última pele que toca na pele dos velhos, o último colo, a última tentativa de dignidade, da esperança que não pode acabar antes de a vida acabar. Não deixem que o fumo vos mate por dentro. O inferno é fácil, está sempre à espera, hospitaleiro. O difícil é regressar. Continuem, mesmo que doa — e vai doer. Continuem. Alguém precisa que o vosso gesto exista.
Se precisarem de mim, estarei aqui para o que for necessário. Quando puderem, se quiserem, faço questão de ir aí abraçar-vos todos, um a um. Aguentem-se, sim?
Com respeito,
com admiração,
Pedro