27/10/2025
O silêncio como linguagem psíquica no mundo hiperconectado
Maria Klien
[Público Br]
Quando o mundo exige reação imediata, silenciar se torna resistência. É na quietude que o pensamento se reorganiza e que o corpo volta a ser sentido. O silêncio é também um espaço ético.
O silêncio sempre me fascinou. Não o silêncio da ausência de som, mas aquele que se instala dentro, quando o pensamento se retira do ruído e o corpo se torna casa. No consultório, observo como essa experiência se perdeu. Muitos chegam com o olhar saturado de estímulos, como se as imagens tivessem ocupado o espaço onde antes cabia ao sentir.
Vivemos um tempo em que o vazio é confundido com ameaça. Há uma urgência em preencher cada pausa, em responder antes de compreender, em se mostrar antes de existir. A aceleração tornou-se o modo dominante de funcionamento psíquico, e o silêncio passou a ser visto como falha. Mas é justamente nesse intervalo que algo essencial se revela: a possibilidade de reencontro com a própria interioridade.
Quando escuto alguém em sofrimento, o que mais procuro é a pausa. Ela é o instante em que o sujeito suspende a defesa e se aproxima de si. O silêncio, nesse sentido, é linguagem. Ele comunica o que não pôde ser dito, o que foi recalcado, o que não encontrou palavras. Não se trata de ausência, mas de presença condensada, uma escuta que antecede o discurso.
A hiperconexão produziu uma ilusão de continuidade. Nunca estivemos tão ligados e, ao mesmo tempo, tão dispersos. As fronteiras entre o dentro e o fora, o íntimo e o público, se tornaram porosas. Essa dissolução não é apenas tecnológica, mas psíquica. A subjetividade se fragmenta quando não há tempo para elaborar, e o silêncio é o primeiro território a ser colonizado pelo excesso.
Aprender a silenciar é, portanto, um gesto político e terapêutico. Exige suportar o desconforto do não saber, o vazio que antecede o pensamento, a vulnerabilidade de não ter resposta. Na clínica, quando o silêncio surge entre analista e paciente, o que se escuta é a possibilidade de uma nova forma de presença. É nesse espaço sem ruído que o inconsciente encontra passagem.
O ruído externo funciona como anestesia. Ele impede o contato com as camadas profundas da experiência e mantém o sujeito em estado de distração constante. Por isso, o silêncio não é apenas um intervalo, mas um método de escuta. É uma prática de contenção, um modo de restaurar a densidade da vida psíquica em meio ao excesso de estímulos.
Quando o mundo exige reação imediata, silenciar se torna resistência. É na quietude que o pensamento se reorganiza e que o corpo volta a ser sentido. O silêncio é também um espaço ético: nele, aprendemos a não responder automaticamente, a ouvir antes de intervir, a sustentar a presença do outro sem a pressa de interpretar.
Penso que, se há um caminho possível para recuperar a saúde mental coletiva, ele começa na reeducação da escuta. Escutar é mais do que ouvir palavras. É acolher o que se anuncia no intervalo entre elas. O silêncio, nesse contexto, é o alfabeto do invisível, o lugar onde a mente respira.
Silenciar não é se afastar do mundo, mas se voltar para dentro dele. É reconstruir o sentido de interioridade num tempo que a dissolveu. Talvez o futuro da mente dependa menos da velocidade e mais da pausa. O silêncio é o ponto onde a vida psíquica reencontra o seu eixo.