
31/07/2025
Hoje presenteio-vos com esta história, assim tenham paciência para chegar ao fim.
❤🧠
"A rapariga das mãos cortadas – um reconto"
Era uma vez, o ano passado, um moleiro que se queixava muito de ser pobre.
Um dia, pôs o machado ao ombro e tomou o caminho da floresta, a fim de cortar lenha para acender o forno. Mal tinha dado a primeira machadada, um homem vestido de negro apareceu não se sabe de onde. Os olhos eram opacos e a boca cerrava-se num sorriso trocista. Não era velho nem novo, mas trazia roupas de veludo que lhe assentavam na perfeição, e foi nisso que o moleiro reparou.
– Porque te cansas tanto a cortar lenha? – perguntou-lhe o estranho. – Se me deres o que está atrás do teu moinho, prometo-te que serás rico e nunca mais terás de moer farinha.
O moleiro encolheu os ombros.
– Atrás do moinho há um pátio e uma macieira que só me serve metade do ano, e mesmo assim me dá trabalho e pede muita água. Podes ficar com ela, se quiseres.
– Prometes dar-me o que está atrás do teu moinho? – insistiu o homem.
– Prometo, já te disse. Agora deixa-me trabalhar, que não tenho a tua sorte.
O estranho riu-se, mostrando os dentes amarelos.
– Fizemos um acordo e eu já cumpri a minha parte. Daqui a três anos voltarei para levar o que me pertence.
E desapareceu não se sabe por onde, tal como tinha chegado.
O moleiro continuou a cortar lenha, pois nem por um momento levou a sério as palavras do estranho. Não tardou muito até que a mulher viesse ao seu encontro, correndo pelo caminho da floresta como se o mundo estivesse prestes a acabar.
– Homem, nem sabes o que nos aconteceu! No moinho apareceu uma arca cheia de moedas, as enxerga onde dormíamos são agora camas verdadeiras e há um espelho à entrada da porta, igual ao da casa do mercador rico.
– Oh, isso deve ser obra do estranho que há pouco esteve aqui a falar comigo – e enquanto dizia isto, sorrindo, o moleiro viu como os tamancos de madeira se transformavam em delicados sapatos de pelica, e como nos dedos grossos e gastos lhe apareciam cinco anéis de ouro.
– E o que prometeste tu a esse estranho, para ele nos trazer toda esta fortuna, de repente? – perguntou a mulher, desconfiada.
– Nada mais do que aquilo que está atrás do moinho – continuou o homem, satisfeito. – Não te preocupes, com tudo o que temos agora podemos plantar dez pomares de macieiras.
– O que tu foste fazer! Esse estranho com quem falaste era o Diabo! – gemeu a mulher, desesperada. – O que ele quer não é a macieira, mas a nossa única filha, que desde manhã ali está a varrer o pátio.
O moleiro e a mulher correram para casa, aflitos. Lá estava a rapariga a varrer o pátio, sem saber o que tinha acontecido. Era tarde demais.
Durante os três anos seguintes comeram e beberam do melhor, compraram roupas de seda e brocado, e nunca mais voltaram a trabalhar. Mas, apesar de a vida lhes ter ficado mais leve, os seus corações estavam pesados. Pressentiam o dia em que o Diabo iria aparecer para cobrar a promessa, porque é certo e sabido que ele nunca falta à sua palavra.
No prazo acordado, a rapariga tomou banho, vestiu-se de branco e esperou pelo Diabo dentro de um círculo de giz que ela própria desenhou. Veio o Diabo e logo uma força o empurrou para trás, atirando-o ao chão.
Agora o Diabo não estava trocista, mas furioso, realmente furioso. Já não se parecia com o homem elegante vestido de negro, nem com alguém que se possa descrever aqui, por isso é melhor que cada um o imagine como bem entender.
– Nunca mais voltes a tomar banho! – gritou ele. – Daqui a três meses regressarei e quero-te como um bicho!
Os pais, cheios de medo, nunca mais deixaram que a filha tomasse banho. A roupa branca cobriu-se de imundície, os cabelos ficaram gordurosos e desgrenhados, e o rosto quase não se deixava ver por baixo da sujidade.
Na véspera de o Diabo voltar, a rapariga chorou tanto que as lágrimas lhe lavaram as mãos, deixando-as limpas como a neve mais alta das montanhas. E pela segunda vez, o Diabo não conseguiu tocar-lhe.
– Tens de lhe cortar as mãos, ou ela nunca será minha! – gritou, voltando-se para o moleiro.
– Não podes falar a sério! Queres que corte as mãos à minha única filha?
O Diabo deu uma gargalhada:
– Eu sempre falei a sério, pobre ignorante. Se não lhe cortares as mãos, tu e a tua mulher virão comigo, e tudo o que tens agora vai desaparecer antes do fim do dia.
O moleiro ficou tristíssimo, mas dali a pouco começou a afiar o machado. Pediu à filha que o perdoasse por fazer uma coisa tão terrível, ao mesmo tempo que preparava o cepo de madeira para ela apoiar os braços.
– Sou tua filha, faz comigo o que quiseres – limitou-se a dizer a rapariga, estendendo as mãos.
Quando o machado caiu, os últimos farrapos das velas do moinho, há muito paradas e sem utilidade, foram levados por uma súbita rajada de vento. Há quem jure que no meio dos gritos foi o vento quem gritou mais alto, mas isso não temos como confirmar.
Veio então o Diabo e quis agarrar a rapariga, mas ela tinha chorado tanto sobre as mãos cortadas que os cotos estavam limpos. Pela terceira vez, o Diabo foi arrojado ao chão e quase ardendo em fúria, mas tinha perdido o seu direito de posse e já nada podia reclamar. Quando desapareceu, todos julgaram que seria para sempre e suspiraram de alívio.
– Filha adorada, o teu sacrifício salvou-nos – disse o pai. – Agora viverás aqui conosco e nada te faltará.
– Não quero viver aqui, nada disto é meu – disse a rapariga. – Tenho bens? Não. Mas encontrarei quem me ajude pelo caminho.
– Que queres levar contigo? – perguntou a mãe, desgostosa.
– Temos moedas de ouro e prata que cheguem para ti.
– Só quero que guardem as minhas mãos cortadas num s**o e o atem à minha cintura.
Os pais assim fizeram. Depois enfaixaram-lhe os cotos com tiras de pano branco, para que melhor se protegesse. E sem olhar para trás, deixaram-na ir, pois não tinham outro remédio.
A rapariga saiu de casa e deixou-se guiar pelo vento, carregando os seus ossos à cintura. Vagueou durante tempo incerto, sentindo no corpo a fome e o frio, dormindo ao relento, arranhando-se nas pedras e no mato da floresta. Até que chegou a um campo cheio de árvores que mais pareciam esqueletos. Tudo à sua volta tinha a cor da terra morta, e apenas uma árvore se mantinha verde e carregada de frutos. Era uma figueira.
«Quem me dera ter mãos, para provar um destes figos», pensou a rapariga. Logo um ramo se inclinou e ela estendeu os cotos, retirando um figo que lhe matou a fome. Depois deitou-se a adormecer, com a cabeça encostada às raízes e as folhas a servirem-lhe de coberta.
Na manhã seguinte, chegou o jardineiro para contar os figos e viu que faltava um. Com um puxão brusco, acordou a rapariga e preparou-se para a repreender, mas depois notou que não tinha mãos e hesitou em culpá-la.
– Onde está o ladrão que veio contigo? – perguntou, aborrecido. – Não sabes que esta figueira pertence ao Rei Pescador? Vai-te embora e não voltes mais, ou ambos ficaremos sem sarilhos.
A rapariga estava ainda mais suja e despenteada do que antes, pois tinham passado muitos dias desde que partira, e o jardineiro deu um passo atrás, enojado.
– Não sabia que um rei podia ser assim tão pobre que só tivesse uma figueira – respondeu-lhe a rapariga. – E porque lhe chamam Rei Pescador?
– Para uma mendiga e uma ladra, sempre és muito insolente – troçou o jardineiro. – Se não fosse isso, até teria pena de ti.
– Não sou nem uma coisa nem outra. Podes ao menos dar-me um figo para matar a fome, antes de seguir o meu caminho?
O jardineiro ia dizer que não, mas, naquele momento, o ramo da figueira voltou a inclinar-se, deixando cair um figo no colo da rapariga, depois outro e mais outro. Espantado, o homem desatou a correr até ao castelo, a fim de contar tudo ao Rei Pescador.
Veio o rei e veio a mãe do rei, e os três ficaram a olhar para a rapariga das mãos cortadas, sem saberem o que fazer.
Os ramos da figueira abraçavam-na e as gotas do orvalho caíam-lhe na cara e no corpo, lavando as feridas que tinha feito pelo caminho.
– Quem és tu? – perguntou o rei. – E quem te pôs neste mundo?
– Sou todas as coisas – respondeu ela. – Sou a que dá a vida e afasta a morte. Sou filha dos ossos e do vento, e ando por estes caminhos de Deus a fazer perguntas.
– E há alguma pergunta que me queiras fazer?
– Sim, há. Porque vos chamam Rei Pescador, se o vosso reino é seco como um deserto?
O rei deixou cair uma lágrima, que a rapariga segurou num dos seus cotos mutilados.
– Chamam-me Rei Pescador porque passo os meus dias a pescar – disse ele. – Estou ferido na coxa direita e custa-me muito combater. Mas agora que nos encontramos, já não te vou deixar partir. A tua pergunta tocou-me e deu-me paz.
Voltaram para o castelo, onde o rei mandou fazer umas mãos de prata para a rapariga e ordenou que a tratassem o melhor possível.
– F**a descansado, eu própria cuidarei dela – disse a mãe do rei, que não via o filho chorar há muito tempo, embora o soubesse em grande sofrimento. Era uma velha sábia, de olhos glaucos e brilhantes, e todos a respeitavam por atuar com justiça e bondade.
Quando as mãos de prata ficaram prontas, a rapariga inquietou-se:
– São bonitas e ser-me-ão úteis, com certeza, mas que hei de fazer às minhas mãos cortadas? Não as quero deitar fora.
– Descansa, ficarão comigo até que já não precises delas – disse a velha mãe. – Desde sempre guardei os ossos dos vivos, e todos os que eles me confiem. Eu sou a mãe que existe no coração de todas as mulheres e tu serás a minha filha sagrada.
Dali a algum tempo, o Rei Pescador quis voltar para a guerra. Quanto mais tentava resistir, mais a ferida na coxa latejava, deixando-o louco de dor. Tanto a rapariga como a velha mãe ficaram tristíssimas, mas sabiam que não podiam fazer nada para o impedir.
Antes da partida, à frente dos seus exércitos e bandeiras, o rei fez um pedido:
– Por favor, escreve-me sempre que possas e não deixes de fazer perguntas.
– Prometo – disse a rapariga.
Algum tempo depois, um mensageiro foi entregar a primeira carta, na qual a rapariga contava o que tinha feito nesse dia e terminava com uma pergunta para o rei: «A quem serve o amor?»
O Rei Pescador respondeu-lhe imediatamente, no intervalo de uma batalha, e o mensageiro correu de volta para o castelo. Mas o Diabo, que só os mais distraídos julgaram ter saído desta história, passou pelo mensageiro e trocou as cartas sem ele ver. O que chegou às mãos da rapariga foi uma resposta muito diferente da que o rei tinha escrito, e dizia assim:
«O amor serve o seu dono, que sou eu, e por isso te ordeno que vás para a torre mais alta do castelo e não saias de lá até eu voltar.»
A rapariga ficou muito triste, bem como a mãe do rei, mas não deixaram de cumprir as ordens recebidas.
Na segunda carta, a rapariga voltou a fazer a mesma pergunta: «A quem serve o amor?»
Novamente o Diabo passou pelo mensageiro e trocou as cartas, escrevendo uma resposta muito diferente:
«O amor serve o seu dono, que sou eu, e por isso te ordeno que não fales com ninguém até eu voltar.»
A rapariga julgou que ia morrer de solidão, mas a mãe do rei abraçou-a e disse-lhe que todos os dias iria visitá-la à torre, uma vez que o filho não tinha proibido que se falassem com os olhos.
O Diabo percebeu que estava a ser vencido pela astúcia da velha mãe, e essa era uma humilhação que ele não podia suportar.
Quando o Rei Pescador recebeu a terceira carta, com a mesma pergunta de sempre – «A quem serve o amor?», pensou que talvez a rapariga não tivesse entendido as suas respostas e preparou-se para voltar a casa. Mas o Diabo adiantou-se e fez chegar outra carta à mãe do rei, que dizia assim:
«O amor serve o seu dono, que sou eu, e por isso te ordeno que a mates e me entregues os olhos e a língua.»
A velha mãe ficou devastada com aquela crueldade, mas o seu coração rebelou-se e não quis seguir as ordens do filho. Mandou matar uma corça no lugar da rapariga e escondeu-a no seu quarto, onde o Diabo não se atrevia a entrar. Durante esse tempo, a rapariga comia os figos que a mãe trazia numa taça, e não demorou muito até que as mãos lhe voltassem a crescer. Primeiro, como as de uma criança, depois como as de uma donzela e, por fim, como as de uma mulher.
Quando o Rei Pescador voltou da guerra, a mãe entregou-lhe as antigas mãos de prata da rapariga e, numa bandeja, os olhos e a língua da corça.
– Porque me fizeste matar a minha filha sagrada? – perguntou-lhe. – Acaso não te ensinei a quem servia o amor, quando eras o meu filho querido e brincavas livre nos jardins do castelo?
Ao ver os olhos e a língua ensanguentada na bandeja, o Rei Pescador pousou a espada e chorou no regaço da mãe. Já não se sentia ferido, mas morto, quase morto, e apenas teve forças para dizer:
– O amor serve o amor. Assim me ensinaste e assim lhe respondi.
A rapariga saiu do quarto e abraçou o rei, agora com as mãos de uma mulher. Mais tarde, casaram-se, e a mãe abençoou a cerimónia. Durante o resto da vida nunca mais deixaram de fazer perguntas.
– A quem serve o amor?
– O amor serve o amor.
Esta história foi contada a cem pessoas, que por sua vez a contaram a mais cem, de modo que agora é a vossa vez de contar às outras cem que ainda não a conhecem. Eu já fiz a minha parte.
História transcrita do livro "Em nome da filha" de Carla Maia de Almeida