23/11/2018
A Espiral Negacionista
De António Coimbra de Matos para Psycholgy Now - Revista Psicologia na Actualidade - Edição de Abril de 2018
ARTIGO INTEGRAL
Na ordem do todo-poderoso, o omnipotente, todo o bem deriva de si e todo o mal dos outros; toda a bondade reside na sua pessoa e/ou nas suas extensões, representações e delegações; toda a maldade, nos outros e/ou no que os acrescenta, simboliza ou substitui, seja isso pessoa, signo ou coisa. É a lei do narcisista*: só gosta de si próprio, odeia os demais. Todo o mal lhe é alheio – a si, aos seus parentes mais próximos (sobretudo ascendentes, a quem deve lealdade sagrada – é da mesma carne), à sua seita.
Assim, toda a causalidade morbígena e destruidora é externa à sagrada família (ele e os seus pais), ao seu credo e à sua trupe (a doutrina e a corporação); a ele próprio, no mais profundo, genuíno e nobre de si mesmo – a sua intencionalidade.
Dantes, era o Diabo; depois, os genes (explicando a constituição); a seguir, os instintos/pulsões; logo, as fantasias
(na vanguarda, as inconscientes e as originárias – naturalmente, universais; por contágio, transversais a todas as culturas); por último, o significado atribuído.
E é neste estadio que nos encontramos. Em certa psicologia como em alguma ciência do comportamento, ouve-se dizer: “Não interessa a causa, mas sim o significado. A coisa não, o símbolo sim”. Contudo, ninguém se alimenta de símbolos de bife e só o eunuco confunde o cheiro de fêmea com o significado de batata quente.
“É o sentido [na acepção de significado], idiota!” – proclama, de dedo em riste, o pós-modernito (que não o pós-moderno). Sim, mas o “sentido” no sentido de intencionalidade, finalidade, causa final, o para que ou razão teleológica. Sim, mas o significado heurístico, em busca da verdade; e não qualquer significado que dê/empreste coerência ao raciocínio, narração ou discurso.
Ou fazemos investigação ou ficção. Ambas são válidas, mas têm valores diferentes: uma para a ciência/conhecimento, outra para a arte/cultura. Na psicanálise, o nosso território de pensamento e acção, arte e ciência combinam-se e potenciam-se mutuamente, mas não se confundem; ou então, de psicanalistas passamos a tarólogos, aprendizes de criadores de natas ou pseudo-filósofos.
Quando se cai no trilho dos burros – sempre pelo mesmo caminho –, mergulha-se no fosso dos ideólogos: difundindo a fé por repetição da parábola. Na gíria, “o relógio de cuco” – mestre bate as horas, postulante repete em cú-cú.
E assim vai a procissão no adro. Uma vez na igreja, o grito da vitória – na Terra como no Céu – ecoa “A verdade é só uma, a nossa e mais nenhuma”.
Mas com essa “verdade” – não há alternativa – ninguém se safa, todos se f(…)dem.
A bem da verdade adquirida e relativa (e não da revelada ou imposta), abaixo o negacionismo da realidade!
Tenho dito e volto a dizer.